Ilona Szabó de Carvalho

Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia)

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Ilona Szabó de Carvalho

Desvios do caminho democrático

'Jogo duro' testa os limites legais em prol de interesses político-partidários

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Há exato um ano o governo publicava o decreto nº 9.685, mudando regras relacionadas ao registro, à posse e à comercialização de armas de fogo e munição no país.

A medida foi um primeiro passo de uma série de retrocessos na regulação responsável desses instrumentos letais. Mas não apenas. Foi um marco também na desmoderada edição e revogação de normas que, por vezes, ultrapassam os limites e atribuições que a Constituição definiu para cada Poder.

Essa (má) prática, chamada pelo professor de direito de Harvard Mark Tushnet de “jogo duro constitucional” (“constitutional hardball”), ocorreu em diversas áreas, como meio ambiente, privacidade de dados, economia e cultura. 

Presidente da República, Jair Bolsonaro, assina decreto para posse de armas
Presidente da República, Jair Bolsonaro, assina decreto para posse de armas - Divulgação/PR

O jogo duro constitucional é caracterizado por juristas e cientistas políticos como uma ameaça à democracia, pois testa os limites legais para ganhos político-partidários, prejudica o entendimento compartilhado das normas democráticas e a expectativa de que o outro lado as cumpra.

Esse estilo de governar não só tenta driblar o Congresso e privilegiar decisões unilaterais como também causa confusão.

O desmantelamento da regulação de armas é exemplo emblemático. Nada menos que dez decretos federais trataram do tema ao longo do ano passado, em alguns casos deixando normas contraditórias 
em vigor ao mesmo tempo.

Neste caso específico, houve também problemas relacionados à concepção das medidas. Não foram apresentados estudos técnicos, tampouco foram divulgadas informações sobre o possível impacto.

Há, ainda, um problema adicional, relacionado à implementação. Acompanhar e compreender as mudanças é desafio não apenas para a população em geral, mas também para os operadores responsáveis pela execução das normas.

Na prática, a confusão normativa coloca em risco a atuação dos responsáveis por assegurar que armas e munições não caiam nas mãos erradas, sejam de criminosos ou de cidadãos despreparados.

Expedir decretos está entre as atribuições do presidente da República previstas na Constituição. A função desses dispositivos, no entanto, deve se limitar a regulamentar leis, dispor da organização e funcionamento da administração federal e da extinção de funções ou cargos públicos.

Extrapolar essas aplicabilidades é uma forma de contornar o Legislativo e os ritos de criação de legislações, incluindo o debate de propostas e negociações políticas.

Tenta-se avançar de forma autoritária, sem precisar prestar contas ou ouvir a sociedade. Autores como Steven Levitsky e Yascha Mounk têm chamado a atenção para essa ruptura das regras do jogo democrático que, com frequência, vem acontecendo de maneira quase silenciosa.

Líderes populistas com tendências autoritárias têm mostrado pouco apreço por essas regras já durante as campanhas, em especial, após ganharem a eleição.

No Brasil, a sociedade civil organizada e a imprensa vêm alertando sobre os desvios democráticos ainda pouco tangíveis para setores que não participam da esfera pública —mas não por isso menos graves. 

O volume de expedição de decretos, portarias e MPs traz um enorme desafio para o monitoramento das ações do governo e para o sistema de freios e contrapesos republicano.

No caso da corrosão da regulação de armas, por exemplo, os institutos Igarapé e Sou da Paz acabam de publicar um documento que busca sintetizar e traduzir para a população as principais mudanças que ocorreram em 2019.

A sociedade, a imprensa e o Judiciário precisam estar alertas e se pronunciar ao identificar novos desvios do caminho democrático.

Reagir é fundamental para que limites não sejam ultrapassados e para que qualquer projeto autoritário não avance.

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