Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior

Existe vida em Nova York

A cidade não é só luxo, é um sorriso improvável que desponta na multidão que corre maratona capitalista fracassada

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Mesmo para um brasileiro afetado pelo imperialismo cultural norte-americano, estar em Nova York é uma experiência impossível de esquecer. Reclamam da poluição sonora de São Paulo, Rio ou Salvador? Acreditem, Nova York é dez vezes mais ruidosa.

Todo o mundo conhece a sirene de uma ambulância, um carro de bombeiro ou uma viatura policial, mas aqui elas parecem estar no volume mais alto e passam em carreata, dia e noite, sem interrupção. Os canteiros de obras se multiplicam: o som das estacas de ferro e das britadeiras, das betoneiras e de outros veículos não identificáveis se juntam à barafunda sem fim que percorre as ruas apinhadas de carros e de pessoas de todos os lugares. Esta é a ruidosa sinfonia nova-iorquina.

Vista aérea de Manhattan - Angela Weiss - 24.jul.23/AFP

As ruas tremem com os vagões do metrô se deslocando de um lugar a outro, incessantemente. Esqueçam estações limpas e organizadas como a da Cinelândia, no Rio, ou a de Pinheiros, em São Paulo. O metrô de Nova York é antigo, eficiente, é verdade, mas sujo, com cheiro de óleo e máquina e habitado por ratos tão grandes e peludos —eu pude ver com meus próprios olhos—, que nos lembram que um dia essa cidade será dominada por eles.

Aliás, o lixo é parte da paisagem. Revirados, acondicionado em sacos, empilhados à noite para serem recolhidos durante a madrugada. As calçadas se tornam trincheiras, e depois não é difícil imaginar porque a expressão "montanha de lixo" não faz mais sentido por aqui. São "cordilheiras" inteiras, "cadeias de montanhas" que crescem na velocidade dessa era.

Em toda parte, um simples café é servido em grandes copos descartáveis de papel com tampas plásticas, cinta de papel para segurar o copo, bandeja de papel ou de plástico para poder transportar, hastes de plástico ou de madeira para mexer, saquinhos de açúcar e muitos guardanapos de papel para limpar a sujeira. Um único café se transmuta num pequeno saco quase cheio de lixo e esse rito sinaliza que o dia —e a produção de resíduos— está apenas começando.

O horizonte é concreto e vidro, vidro e concreto, com formas e cores diferentes. Recorda-nos que os humanos exploram e ocupam até os espaços inabitáveis. Olhar para o céu em Nova York é olhar para os homens e seus feitos, mesmo que esses feitos sejam feios e a feiura revele, de maneira paradoxal, a face da beleza que é nossa humanidade. O azul ou o cinza do céu é ferido pelas lanças de ferro e cimento erguidas como bandeiras que demarcam a nossa existência sobre a terra.

A aparente hostilidade da cidade, da paisagem às pessoas, é interrompida pelas flores que crescem do improvável, pelas folhas que caem neste outono e pela chuva que deixa tudo mais caótico.

A desigualdade, tão aviltante quanto a desigualdade das nossas cidades, não chega a ser um muro a dividir as pessoas para impedi-las que caminhem lado a lado. Olhe para o seu lado no café e haverá alguém descalço e amarrotado segurando um copo igual ao que te serve, refletindo que somos, sim, partes do todo. Nos vagões do metrô todos os rostos do planeta se misturam, se sentam nos mesmos bancos e seguram as mesmas barras de ferro.

Nova York não vive apenas nos painéis eletrônicos da Broadway, nas lojas de luxo da Quinta Avenida ou nos restaurantes cinco estrelas que a classe rica de qualquer lugar se orgulha de poder frequentar. Nova York é um sorriso improvável que desponta na multidão que corre essa maratona capitalista fracassada.

A cidade é Mohammad, o motorista que veio de Bangladesh, e que une as mãos em reverência quando descobre que alguém escreve: "Love stories, sir?". É o atendente peruano que sente saudade de sua cidade, mas que me jura que é melhor viver aqui. É a comovente intimidade de um homem ajeitando o cabelo de outro homem. Aqui eles se sentem livres para amar, mas se estivessem em seus países é provável que pertencessem a lados opostos de uma guerra.

Nova York é a fúria de duas mulheres empurrando carrinhos de bebês no Harlem proferindo calões aos quatro cantos, sem que ninguém lhes diga que elas devem sufocar sua indignação.

Talvez a luz de uma manhã de outono seja a melhor definição para essa cidade. Ela se espraia tímida, única, uma lanterna iluminando o entulho, o escombro, de onde vai emergir algo que poderemos chamar de vida.

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