Sob sol tórrido do verão setentrional, lideranças do PC chinês aproveitam o começo de agosto para escapar ao litoral e, na praia de Beidaihe, manter tradição anual iniciada nos tempos de maoismo: com os pés na areia, discutir os rumos do país em reuniões informais. Na rodada em curso, um tema a dominar as conversas são os contornos da guerra comercial com os EUA, iniciada, oficialmente, na primeira semana deste mês.
Washington anunciou pacote de tarifas sobre a compra de diversos produtos chineses, entre eles componentes de avião e discos rígidos. Pequim respondeu de imediato e impôs sobretaxas a importações norte-americanas. Sobrevive a dúvida de até onde vai a ofensiva nacionalista e protecionista do presidente Donald Trump e quais os impactos no comércio e no cenário econômico global.
Em Beidaihe, a cerca de 260 quilômetros de Pequim, mandarins alimentam o debate intrapartidário sobre respostas aos primeiros ventos da tormenta trumpiana. Não existem, no balneário, agendas formais ou atas de reuniões. Nesta época, sinólogos saem à caça de sinalizações ao perscrutar a capa do "Diário do Povo", principal jornal do país, ou acompanhar telejornais noturnos, espaços prestigiosos de uma mídia controlada com mão de ferro pelo governo.
A investigação busca, ao esquadrinhar o noticiário, revelar figuras e ideias em alta no hermético castelo da política chinesa. A tarefa remete a tempos soviéticos, quando leitura das entrelinhas do "Pravda" (verdade, em russo), porta-voz do regime comunista, sugeria caminhos da luta pelo poder no Kremlin.
Na China modelada pelas reformas de Deng Xiaoping (1904-1997), a política permanece plúmbea, monopolizada pelo PC, enquanto a economia se abre aos matizes do capitalismo. A alquimia contabiliza quatro décadas de existência.
Xi Jinping, dirigente máximo do partido e presidente do país, não seria um fã do conclave de Beidaihe. Carrega a fama de centralizador, sobretudo após os movimentos, nos últimos meses, para consolidar poder, ao quebrar a tradição partidária de não apontar um sucessor e de patrocinar abolição de limites à reeleição presidencial.
No entanto, Xi não repetiu seu antecessor, Hu Jintao, que, em 2003, chegou a anunciar a suspensão da confraria na praia. A quebra da tradição parecia uma tentativa de distanciamento em relação à era Mao Tse-tung (1893-1976), quando Beidaihe se tornou uma espécie de capital veranil e, em 1958, sediou encontro histórico do Politburo, principal instância de poder do Partido Comunista.
Atualmente, o balneário recupera charme político, ainda que sem o glamour de tempos maoistas, ao hospedar conversas sobre estratégias para enfrentar os EUA. E, mesmo antes do auge do verão chinês, surgiram indícios de mudanças de curso.
Pequim teria ordenado um esfriamento na divulgação do projeto China 2025, pilar do atual governo e arquitetado para levar o país à liderança global em áreas como inovação tecnológica. A guerra comercial de Trump, embora anunciada para proteger "mercado e empregos norte-americanos", desponta mais como reação à acelerada ascensão e modernização da economia chinesa.
No embate entre as duas maiores economias do planeta, Pequim sinaliza desejo de baixar a temperatura. Torce ainda para que o maior vigor nacionalista de Trump seja de curto prazo, inflado pela campanha das eleições legislativas, em novembro.
Em Beidaihe, cenários diversos para a guerra comercial deverão monopolizar conversas da "nomenklatura" chinesa, em meio a um dos principais desafios a Pequim desde 1978, início das reformas de Deng Xiaoping. E os moderados, empenhados em amenizar o confronto, parecem ser mais numerosos no balneário dos mandarins.
Jaime Spitzcovsky
Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.
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China, praia e a guerra comercial
Em tom informal, líderes do PC aproveitam o verão para debater rumos do país
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