Joanna Moura

É publicitária, escritora e produtora de conteúdo. Autora de "E Se Eu Parasse de Comprar? O Ano Que Fiquei Fora da Moda". Escreve sobre moda, consumo consciente e maternidade

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Joanna Moura

Ser pai e o privilégio do trabalho visível

Trabalho feito pelas mães é invisível, mas serve como motor para o funcionamento de tudo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Faz três semanas que eu voltei a "trabalhar". Digo "trabalhar", com protagonismo para as aspas incômodas recheadas de sarcasmo porque, afinal, o que não faltou nesse pouco mais de um ano em que fiquei fora do mercado de trabalho foi trabalho. Se você é mulher e tem filhos (não necessariamente no plural), sabe bem do que estou falando. Como bem apontou o tema da redação do Enem deste ano, cuidar pode até ser um trabalho invisível, mas não é porque a sociedade não o enxerga (e muito menos remunera) que ele não está lá, servindo de motor para o funcionamento de tudo o que está à nossa volta.

Mas permita-me voltar ao ponto de onde parti, ao trabalho visível, valorizado, remunerado, ao trabalho cuja semântica não gera debate. Depois de 13 meses acoplada num bebê, faz três semanas que às 8:30 da manhã eu abro a porta da casa, me despeço das crianças e me misturo ao movimento das ruas. Na bolsa, apenas meia dúzia de coisas minhas. Nenhum brinquedo à vista.

0
Trabalho feito pelas mães é invisível, mas garante o funcionamento de tudo - Rivaldo Gomes/Folhapress

Entro no metrô e a falta de sinal me compele a diminuir o ritmo, esquecer o mundo lá fora. Abro meu livro. O trajeto subterrâneo demora 40 minutos. Pela primeira vez em meses, consigo ler capítulos inteiros sem ser interrompida pelos gritos dos outros ou pelo meu próprio corpo gritando para que me entregue ao sono.

Saio da estação, do outro lado da cidade, sem me preocupar com o tempo que faz lá fora. Se está sol, ando mais devagar, sentindo o vento frio do outono bater no rosto. Se chove, apresso o passo, paro no café, compro uma bebida quente pra manter as mãos aquecidas e sigo sem me importar com o esquecimento do guarda-chuva.

Chego no escritório, escolho um lugar para sentar, converso amenidades com as pessoas que conheci faz poucos dias, mas com as quais já me sinto confortável em diálogos superficiais. Pergunto sobre elas, assim como perguntam sobre mim. Fazemos comentários engraçados, rimos e seguimos com nossos compromissos.

O dia passa na velocidade que o tempo tem. Nem rápido demais, nem demasiado lento. Me surpreendo com o tanto de coisa que cabe dentro das oito horas diárias previstas no meu contrato e me pergunto pra onde ia o tempo naqueles dias em que eu piscava e horas já tinham se passado sem que eu tivesse conseguido sair do pijama.

Um desses dias, ao encontrar o meu chefe para uma reunião, ouvi a pergunta: "como está indo esse retorno depois de ter um bebê?", seguida de um comentário: "Deve ser difícil". Minha resposta veio rápida e quase involuntária, como um espasmo verbal: "Estar aqui é a parte mais fácil do meu dia". Ele sorriu um sorriso confuso e seguimos a reunião, mas eu segui pensando.

Saí do trabalho aquele dia procurando pela culpa, essa que eu me acostumei a carregar o tempo todo quando passava as 24 h do dia em função dos meus filhos. No lugar dela, abri a porta e encontrei uma casa funcionando. Crianças de braços abertos e sorrisos largos correndo na minha direção, a mesa posta, a comida saindo do forno. E pensei: "Então é isso que é ser pai?"

Meu coração se contorceu ao lembrar de tantas vezes que amigas reclamaram que estavam exaustas, mas que não tinham coragem de pedir mais ajuda aos maridos, afinal: "ele trabalha o dia todo, coitado". Lembrei também dos homens que travestem de pena o que é, grande parte das vezes, privilégio. Poder trabalhar, ganhar dinheiro, ler um livro no metrô, escolher o que comer no almoço, voltar pra casa e encontrar abraços, sorrisos e coisas resolvidas. E ainda se sentir no direito de dizer: "estou tão cansado."

E se, nesse mundo do avesso em que nos encontramos agora, eu estou pai, então tem alguém que, pela primeira vez, está mãe. Há de se ressaltar que tive a sorte de procriar com alguém que é pai de fato, que divide por igual a tarefa, que não amamentou porque era fisicamente impossível (e porque eu não quis ceder às mamadeiras). Mas não há como negar que a solidão de, por um ano, trabalhar para um chefe recém-nascido, num ambiente de trabalho que varia da sala para o quarto e do quarto para o banheiro, e sem um time de profissionais para ajudar, é uma experiência ele não teve. Até agora.

Por obra do destino, eu voltei ao trabalho num momento em que ele está com uma rotina mais flexível. Faz três semanas que eu saio e ele fica. Mas foi num dia especialmente difícil, com direito a bebê doente sem ir pra creche, que essa "mãe" sentiu na pele aquele cansaço que só quem viveu sabe. Aquele que vem de dias e dias sem um minuto pra si, de tentar fazer tanto e ser obrigada a se contentar em fazer o que dá. E num acesso de compaixão por mim e por ele próprio, esse pai que está mãe proferiu então as palavras que tão poucas mães já ouviram do pai de seus filhos: "Desculpa, eu não sabia que era tão difícil".

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com dois meses de assinatura digital grátis

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.