Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
Liberdades de expressão
Em 1989, o aiatolá Khomeini lançou uma fatwa sobre o escritor Salman Rushdie. Tudo porque Rushdie, em livro francamente mediano ("Os Versos Satânicos"), não tinha tratado o profeta Maomé com o devido respeito. A condenação à morte era a resposta adequada para semelhante blasfêmia.
Foi um choque para o Ocidente letrado. Mas, tirando personagens lamentáveis que não voltaram a ter lugar na minha estante (como John Le Carré), houve um consenso decente de que o Ocidente livre era diferente da teocracia iraniana.
Passaram 16 anos. Hoje, teria dúvidas sobre o destino de Rushdie. Basta escutar a Comissária Europeia para a Justiça. Segundo a revista "The Economist", parece que a sra. Vera Jourova está preocupada com as "ameaças" à liberdade de expressão. E que "ameaças" são essas?
A negação do Holocausto é uma delas. Ofensas a religiões são outras. Curioso: para a sra. Jourova, o negacionismo do Holocausto ou a ofensa a credos alheios não são manifestações de liberdade de expressão, por mais aberrantes que nos pareçam. São "violações", o que permite perguntar em que consiste a liberdade de expressão para a Comissária Europeia.
Provavelmente, consiste em nunca dizer algo que possa ofender grupos ou indivíduos com ideologias, religiões ou taras que eles consideram sagradas. Atendendo à variedade de ideologias, religiões ou taras que existem entre a espécie humana, a liberdade de expressão acabaria por virar a liberdade do silêncio.
Ironicamente, se esse dia chegar, o Ocidente será indistinguível do Irã. O que me permite regressar ao início.
Em 1989, o governo da diabólica Margaret Thatcher, que Rushdie criticava com dureza, não hesitou em proteger a vida do escritor. Desconfio que hoje a conversa seria outra –e os governos europeus, em nome da liberdade de expressão, seriam os primeiros a enviar a cabeça de Rushdie para Teerã.
Semanas atrás, escrevi nesta Folha sobre as "microagressões". Em que consistem esses delitos?
Simples: as "microagressões" são ideias ou meras frases que podem provocar "desconforto emocional" nos estudantes norte-americanos. Para eles, as universidades não devem ser lugares de debate livre, onde é preciso "pensar" e, muitas vezes, confrontar a ignorância com matérias que podem ser incômodas.
As universidades devem ser um prolongamento do jardim infantil, onde nada perturbe a fragilidade mental das crianças.
Pois bem: o mundo das "microagressões" pode ter novos capítulos. Tudo porque Greg Abbott, o governador do Texas, aprovou uma lei que autoriza os alunos a levarem armas para as salas de aula.
Em teoria, faz sentido: sempre disse que a única forma de parar com os massacres escolares passava pela presença, nas escolas, de alguém responsável (e armado) pela segurança dos estudantes.
Na prática, nunca pensei que essa responsabilidade fosse atribuída aos próprios estudantes, sobretudo quando sabemos dos dramas das "microagressões". Será abusivo prever que os tiroteios aumentem sempre que um professor disser uma palavra que provoque "desconforto emocional" nos alunos armados?
Não creio. E só espero que a medida do Texas não faça doutrina na Europa. Dar aulas com colete antibala não é a minha ideia de carreira acadêmica.
O canal de TV France 3 lançou um comercial para promover as mulheres da estação.
Vemos no filme o interior de uma casa. E depois encontramos fumaça saindo do forno; o quarto das crianças transformado em pocilga; a sala a arder porque alguém se esqueceu do ferro de engomar em cima de uma camisa –o caos, em suma, e a ideia simpática (e progressista) de que as jornalistas da France 3 não estão em casa, nas tarefas de subjugação doméstica. Estão plenamente emancipadas.
O governo não gostou, as redes sociais também não: o filme, disseram, é uma ofensa às mulheres ao acusá-las de deserção doméstica.
Engraçado: quando li sobre a polêmica no jornal inglês "The Guardian", ainda imaginei que a ira se explicava pelo retrato ofensivo que o filme faz dos homens. O próprio canal confirmou que a ideia era precisamente esta: mostrar que as mulheres não são escravas do lar; e que os homens ainda são incapazes de dar conta do recado.
Ingenuidade minha: afinal de contas, sou um homem. E, como homem, um inútil com vários incêndios no currículo.
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