
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.
O novo autoritarismo tem mais hipóteses de sucesso do que o antigo
Dmitri Lovetsky/AP | ||
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As tradicionais "matrioshkas" ganharam versão Trump e Putin em uma loja de São Petersburgo |
Uma das grandes mentiras da política moderna é a crença ingênua de que a liberdade é uma paixão universal. Não é. A liberdade significa também um fardo de responsabilidade que nem todos estão dispostos a suportar.
Nesse capítulo, creio que Thomas Hobbes (1588-1679) estava essencialmente certo: as pessoas temem a violência, a escassez, a morte. É a segurança, e não a liberdade, que a maioria deseja.
Isso ficou provado nas experiências totalitárias do século 20. O fascismo e o nazismo, convém lembrar, tiveram amplo apoio das massas. Porque eram ideologias que defendiam as liberdades individuais?
Claro que não. Depois das ruínas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e das consequências devastadoras da Grande Depressão, havia nos europeus um desejo trágico de segurança. Mesmo que isso implicasse, como de fato implicou, a suspensão da democracia liberal.
O mesmo vale para o comunismo. Ou, melhor dizendo, para o fim do comunismo. A vontade de liberdade só se tornou premente quando as ilusões da segurança desapareceram. Onde estava a utopia de um mundo sem fome, sem exploração, sem medo?
Não estava. Se, por absurdo, o comunismo tivesse garantido o conforto material que prometia aos seus escravos, questões de liberdade não teriam sido prioritárias.
É por isso que aplaudo o ensaio de Holly Case no sempre brilhante Aeon.com. O título é "The New Authoritarians" e o objetivo da historiadora da Universidade Brown é entender o novo autoritarismo –Putin, Erdogan, Órban– por contraposição ao velho.
E Holly Case oferece uma observação luminosa: o velho autoritarismo preocupou-se em criar o "homem novo", um esforço brutal que, pela sua natureza quimérica, arrastou crueldades igualmente brutais. Crueldades que, no limite, condenaram essas utopias à sua própria destruição.
O século 20 fez-se com "campos de trabalho" (ou de "reeducação"); propaganda maciça; cultos de personalidade; e outras fantasias mitômanas e sanguinárias, dispostas a elevar a raça, ou o proletariado, a alturas verdadeiramente homéricas.
O novo autoritarismo, pelo contrário, não está interessado em criar "homens novos". Basta que as partes respeitem o "contrato social" com o cinismo respectivo: o Estado garante as coisas básicas da vida; os indivíduos não ocupam as suas cabeças com o mundo sórdido da política. E as liberdades?
Leitor, leitor: você não leu o que eu escrevi no princípio?
O diagnóstico de Holly Case é certeiro. Mas falta uma conclusão: o novo autoritarismo tem mais hipóteses de sucesso do que o antigo. Precisamente pela sua falta de vocação totalitária.
Abandonando a ambição utópica de criar "homens novos", o autoritarismo do século 21 já fica satisfeito com o silêncio dos homens velhos.
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