João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Banalidades do mal

Por razões acadêmicas, passei meus últimos dias viajando pelo Terceiro Reich. Há lugares melhores para visitar, admito, mas é preciso pagar o uísque das crianças.

Sem falar do óbvio: saber como uma sociedade sofisticada, no caso a alemã, desceu à mais abjecta barbárie a partir de 1933, eis uma pergunta que não morre.

Sabemos como vários autores foram respondendo a ela – e um livro de Leonard Newman e Ralph Erber, “Understanding Genocide: The Social Psychology of the Holocaust”, é o melhor ponto de partida sobre o estado da arte.

Depois da guerra, Theodor Adorno e seus pares procuraram a explicação para o horror na cabeça dos carrascos. Nos nazistas, haveria uma “personalidade autoritária” que os tornou vulneráveis aos apelos do crime.

Ao mesmo tempo, essa personalidade foi reforçada por uma certa tradição – militarista, antissemita – que aprofundou o defeito de origem.

Na década de 1960, as coisas mudaram – e mudaram com a obra monumental de Raul Hilberg, “The Destruction of the European Jews”. Para Hilberg, o nazismo e o Holocausto foram um produto, não da “personalidade autoritária” – mas da personalidade burocrática, submissa, mendaz, que transforma o horror em rotina.

Adolf Eichmann, por exemplo, julgado em Jerusalém pelo seu papel central na “Solução Final” e condenado à morte, é o rosto dessa “banalidade do mal” que Hannah Arendt relatou nos seus textos.

Hoje, não parece haver uma “grande narrativa” capaz de explicar, com uma só “chave”, o comportamento dos nazis e seus cúmplices.

Mas se eu concordo com essa tese – uma mistura de violência, medo, antissemitismo estrutural, nacionalismo agressivo, burocratização e conformismo, tudo ajudou – acho estranho que os autores do livro citado tenham esquecido um autor em particular: Jonathan Glover e o seu “Humanity: A Moral History of the Twentieth-Century”. Reli o tratado por esses dias e aconselho a qualquer interessado no assunto.

O livro de Glover não é, em rigor, uma obra sobre a Alemanha nazista. É uma reflexão moral sobre o século 20, onde a Alemanha nazista tem destaque especial.

E, para Glover, se existem várias explicações para o crime, a verdade é que o crime não teria sido possível sem a destruição prévia de uma “identidade moral”. Em que consiste essa “identidade”?

Um dos princípios mais importantes da vida ética é a ideia de que não somos espectadores indiferentes perante a provação de terceiros.

Essa, pelo menos, é a ideia apresentada por Adam Smith na sua “Teoria dos Sentimentos Morais” (1759). Existe uma paixão original na nossa natureza – que o autor designa por “simpatia” – e que consiste em sermos capazes de nos imaginar no lugar do outro – de imaginarmos as suas dores ou humilhações.

Para Smith, o contrário desse sentimento – ou seja, a incapacidade do espectador para sentir compaixão pelos outros – é uma “desumanidade real e grosseira”. Sem essa “simpatia”, está aberto o caminho para o desastre.

Analisando o comportamento e o testemunho dos carrascos, é precisamente a ausência dessa “simpatia” que Jonathan Glover encontra em todos eles.

E esse vazio emotivo só foi possível por uma “transmutação dos valores” operada pelos nazistas (para usar a célebre categoria nietzschiana) e pela consequente representação das vítimas como indignas de merecer qualquer “simpatia”.

Nas palavras de Jonathan Glover, o culto da dureza e da desumanidade afigurou-se central na construção de uma nova identidade moral – de um novo homem, em suma, despojado do sentimentalismo burguês (ou judaico-cristão).

Nesse sentido, não é possível esquecer a admiração de Hitler por Stálin e pela forma como os soviéticos também desprezavam as piedades do humanitarismo. Stálin, para Hitler, era “metade besta, metade gigante” – um gêmeo, digamos.

Mas não bastava a criação de uma identidade moral – ou, melhor dizendo, imoral – que valoriza a desumanidade acima de qualquer fraqueza sentimental.

Era igualmente necessário apresentar a vítima como um elemento sub-humano – isso explica a profusão de linguagem zoomórfica com que os judeus eram caracterizados. As vítimas não eram pessoas, seres humanos, gente; eram ratos, baratas, piolhos, parasitas.

Tal como afirmou um dia o escritor Eric Hoffer, “os movimentos de massas podem surgir e expandir-se sem uma crença em Deus, mas nunca sem uma crença no demônio”.

É um aviso importante. Para explicar o passado – e o presente.

E se o leitor pensa que os nazistas vieram do planeta Marte, desengane-se: a destruição da decência moral e a transformação dos outros em animais repelentes é a coisa mais banal do mundo.
 

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