João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Aprender a contar até dois

O sonho do fanático é ter um mundo que seja o espelho da sua cabeça

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A morte de Amós Oz é uma pequena tragédia para a civilização. Não é apenas uma tragédia para a literatura, o que já seria compreensível: saber que não teremos mais nenhuma obra como "De Amor e Trevas" ou "Entre Amigos" é privação que baste.

Não. É de civilização que falo: aquela película fina, e muito facilmente destruída, onde habitam a inteligência, o ceticismo e a ironia. E que é possível encontrar também nos seus ensaios.

Por mera coincidência, recebi a morte do escritor israelense poucos dias depois de ler o seu "Dear Zealots", que na edição portuguesa ficou como "Caros Fanáticos". É um título razoável, mas "Caros Zelotes" seria mais autêntico, histórica e filosoficamente falando.

A seita dos zelotes não se esgotou no século 1º depois da missão literalmente suicida contra a presença do Império Romano na Palestina.

Nesse quesito, os zelotes são como os antissemitas —criaturas de todas as épocas que partilham o mesmo código: um espírito de fanatismo em nome da causa sagrada. Mas como reconhecer esse espírito?

Ilustração de Angelo Abu para João Pereira Coutinho de 8.jan.2019.
Angelo Abu

No primeiro ensaio, que dá título ao livro, Amós Oz tem duas observações luminosas que fazem uma vênia a Jean-Jacques Rousseau: o fanático é um sentimental; o fanático só sabe contar até um.

Sobre o primeiro axioma, a minha experiência o confirma. Os fanáticos que conheci na vida partiam sempre do pressuposto de que os seus sentimentos eram a fonte da verdade.

Como Rousseau diria, os sentimentos não estão poluídos pelos artifícios da civilização, muito menos por esse demônio ilusório que dá pelo nome de "racionalidade".

De igual forma, as causas que defendiam eram sempre articuladas de forma emotiva, o que concedia às suas palavras uma alegada superioridade moral. Ele, o fanático, sente genuinamente; os outros, que não sentem como ele, são seres indignos ou coisa pior.

É por isso que o fanático só sabe contar até um. O sonho dele é ter um mundo que seja o espelho da sua cabeça. Não admira que o fanático abrace com tanto entusiasmo a unanimidade da multidão. Como escreve Amós Oz, ressoando o doutor Sigmund, a "vontade geral" permite ao fanático regredir e reviver os confortos do útero materno.

A falta de sentido de humor, e sobretudo de humor sobre ele próprio, é apenas a conclusão lógica de uma personalidade onde não existe qualquer personalidade. O humor só pode nascer quando se aceitam as "dissonâncias trágicas da vida". O fanático não aceita dissonâncias. Pelo contrário: ele as esmaga, como o perigo que (não) são.

O judaísmo não esteve nem está a salvo dos zelotes. E é especialmente contra eles que Amós Oz dedica o segundo ensaio do livro.

Na minha qualidade de gentio, embora com "Pereira" no nome e vários nomes bíblicos na família (Ester, Ismael etc.), não sei avaliar com rigor se a essência do "ethos" judaico está na cultura de discussão permanente entre os homens, e até entre os homens e o patrão lá de cima.

Mas sei que é esse pluralismo textual e existencial que mais me interessa na tribo. É dessa confluência de vozes; é desse "gene rebelde", como lhe chama Oz, que nasceu o meu panteão de artistas, músicos ou escritores, judeus quase todos.

Por último, se não existe uma luz, mas várias luzes; se não existe uma interpretação única e uniforme, mas várias interpretações possíveis, como escapar à negociação e ao compromisso entre visões distintas?

Para Amós Oz, não é possível escapar sem cair no fanatismo. Isso é particularmente válido para o conflito israelo-palestino, tema do terceiro e último ensaio do livro.

Nos últimos anos, tem crescido entre os especialistas a peregrina ideia de que o conflito só pode ser resolvido pela opção de um Estado binacional, onde judeus e árabes possam viver harmoniosamente como irmãos.

Essa fantasia, que ignora o destino de outras experiências multinacionais (Iugoslávia, Líbano, Chipre etc.) e que tornaria os judeus em grupo minoritário dentro do seu próprio Estado, é uma negação da realidade sangrenta que dura um século.

Até ver, não há alternativa aos dois Estados. O que significa que não há alternativa a sacrifícios das duas partes.

Do lado israelense, o sacrifício da ideia de um Grande Israel. Do lado palestino, o sacrifício da totalidade da Palestina, do Mediterrâneo ao rio Jordão. Mas como ensinar os zelotes a contar até dois?

Se a prosa não serviu, talvez a poesia —de Yehuda Amichai, que teve seu primeiro livro publicado no Brasil e que serve de epígrafe ao livro de Amós Oz.

Traduzo livremente:

Do lugar onde temos razão

flores jamais crescerão

na primavera.

O lugar onde temos razão

é duro e pisoteado

como um pátio.

Mas dúvidas e amores

escavam o mundo

como uma toupeira, um arado.

E um sussurro será escutado no lugar

onde a casa arruinada

existia.

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