João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu

A arte de saber apanhar

O corpo é de Rocky, a cabeça é de Trump: há método naquela loucura

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Donald Trump partilhou no seu Twitter uma foto de Rocky Balboa. Melhor dizendo: o corpo é de Rocky, a cabeça é de Trump. Uma monstruosidade? Certo. Mas uma monstruosidade política, como tudo que Trump faz. Há método naquela loucura.

Para entender melhor o método, uma memória recente. Estive em Filadélfia algumas semanas atrás. E aproveitei para visitar o Museu de Arte da cidade, que alberga uma coleção respeitável de pintura moderna.

Nada me preparava para o cenário que iria encontrar. Não falo de arte. Falo de gente: nas escadarias exteriores do museu, um mar de gente correndo até ao topo —e, lá em cima, abrindo os braços em sinal de vitória. E fotos, muitas fotos. E vídeos, muitos vídeos.

montagem de rocky balboa com a cara de Donald Trump
Post de Donald Trump no Twitter - Reprodução/Twitter

Pois é: a principal atração do museu de Filadélfia são aquelas escadas que Rocky Balboa escalava nos seus treinos. Eu próprio, cedendo a uma tentação adolescente e vergonhosa, resolvi experimentar.

Quando cheguei no topo —não mintas, João: quando cheguei a meio, levei a mão à boca só para ver se eram os pulmões saindo. Não sou Rocky. Rocky nunca existiu. Ou existiu?

Claro que existiu. Ao lado da famosa escadaria, a prefeitura de Filadélfia resolveu instalar uma estátua do “Garanhão Italiano” —a estátua de bronze que aparece em “Rocky 3”. E existem filas, quilométricas filas, para tirar fotos com a figura.

Não me atrevi a tanto. Mas, escutando as conversas dos turistas, eles estavam convencidos que Rocky Balboa, tal como o homônimo Rocky Marciano, era um personagem real, campeão de boxe. Se calhar, até confundiam ambos.

Essa experiência ilustra duas coisas. A primeira é que Sylvester Stallone conseguiu a proeza, raríssima na cultura popular, de fundir ficção com realidade. Mais: a ficção engoliu a realidade e impôs-se como verdade. 

Existem outros casos: há quem acredite que Sherlock Holmes, por exemplo, existiu mesmo —um detetive londrino de finais do século 19, que até tem casa-museu em Baker Street, onde estão seus livros, cachimbos, pijamas.

Anos atrás, sei lá onde, lembro de ler uma reportagem sobre a quantidade de cartas diárias que Baker Street 221b ainda hoje recebe, com pedidos de ajuda para solucionar crimes reais. Que maravilha de premissa para um romance policial!

Mas a mitologia Rocky só existe porque os filmes expressam um “ethos” que é caro ao louvável individualismo americano. Essa filosofia, como muito bem notou o jornal Daily Telegraph sobre a publicação de Trump, está inscrita na base da estátua e reza assim: “It’s not how hard you hit, it’s how hard you can get hit and keep moving forward”. Tradução selvagem: não interessa apanhar, o que interessa é apanhar e continuar seguindo em frente.

A frase, lógico, também é ficção; é uma fala do personagem em “Rocky Balboa”, de 2006. Trump apropria-se dela para enviar uma mensagem em vésperas de ano eleitoral: ele, tal como Rocky, até pode apanhar feio de Nancy Pelosi (Apollo Creed?) ou do presidente democrata do Comitê de Inteligência da Câmara, Adam Schiff (Ivan Drago?). Mas ele seguirá em frente rumo ao segundo mandato.

Infantil? Claro que sim. Eficaz? Para a inteligência média do eleitor médio, talvez. Nada supera a linguagem universal da cultura pop.

Aliás, para que a mensagem fosse perfeita, só faltava que o nosso Donald rumasse para Filadélfia e, frente às câmeras, subisse correndo aquelas escadas.

Mas o homem, ao contrário do que dizem dele, conhece bem os seus limites.

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