João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Com o novo coronavírus, acalmam-se os mais jovens com a desgraça dos mais velhos

A sutil discriminação contra os mais velhos fará de todos nós, jovens, as futuras vítimas dessa cultura desumana

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O novo coronavírus desperta a estupidez que há em nós. Não sou especialista. Mas Donald Trump é. Em entrevista à Fox News, o presidente afirmou que não acreditava nos números da Organização Mundial de Saúde (OMS). A taxa de mortalidade ronda os 3,4%? 

A cabeça de Trump recusa. Há muitos infetados por aí que, apesar de infetados, ficam em casa e não contribuem para inflacionar as estatísticas.

O verdadeiro número, na cabeça de Trump, será de 1% ou até menos. O que significa que as pessoas, apesar de infetadas, vão trabalhar, com sintomas ligeiros, sem dramas de qualquer espécie.

É uma forma de ver as coisas. Mas existe outra, que encontro em vários textos relaxados: o novo coronavírus é um perigo, talvez, mas só para os mais velhos. A mensagem que se extrai é essa: jovem, se tens menos de 50 anos, não temas nada.

Se olharmos para a frieza dos números da OMS (sorry, Donald), a ciência está do lado dos negligentes: até os 50 anos, a taxa de mortalidade é menor do que 0,5%. As coisas só ficam complicadas a partir dos 50 (taxa de mortalidade de 1,3%), depois dos 60 (3,6%), 70 (8%) e, sobretudo, dos 80 (15%).

Mas a questão, aqui, não é numérica. É humana. Em várias matérias, em vários programas de TV, nas conversas banais do cotidiano banal, a ideia é acalmar os mais jovens com a desgraça dos mais velhos. Como se os mais velhos fossem dispensáveis por definição –aquela parte da humanidade que, francamente, tem de morrer de qualquer jeito.

Curiosamente, não passa pela cabeça desses otimistas sem escrúpulos que a velhice não é uma anomalia; é, para os afortunados, um destino. Hoje, e ainda segundo a OMS, haverá 600 milhões de pessoas acima dos 60. Em 2025, o número terá dobrado. Em 2050, seremos 2 bilhões.

Se partirmos do pressuposto, bastante razoável, de que as epidemias farão parte do cardápio no mundo globalizado, os descartáveis de amanhã são os otimistas sem escrúpulos de agora.

A sutil discriminação contra os mais velhos fará de todos nós, jovens, as futuras vítimas dessa cultura desumana.

Homem veste máscara de proteção em metrô de São Paulo para se proteger do coronavírus, em 6 de março de 2020
Homem veste máscara de proteção em metrô de São Paulo para se proteger do coronavírus, em 6 de março de 2020 - Rahel Patrasso /Reuters

Mas não existe apenas discriminação sutil quando o assunto é a velhice; a doença serve o mesmo propósito. Ainda sobre o novo coronavírus, a distinção fundamental não é apenas entre “eles” (os velhos) e “nós” (os jovens). Também existe uma barreira psicológica entre “eles” (os doentes crônicos) e “nós” (os saudáveis, os eleitos, os perfeitos).

Sim, entendo: por motivos de segurança, pessoas com patologia cardíaca, doenças respiratórias, diabetes ou câncer devem tomar precauções adicionais. Mas o ponto, aqui, não é securitário. É, uma vez mais, humano.

Tal como os mais velhos não fazem propriamente parte da paisagem, os doentes crônicos também não. Eles são a exceção de um mundo eternamente saudável, que respira de alívio por fazer jogging e seguir uma dieta vegana. Um mundo de hipocondríacos em permanente estado de alerta.

Não admira que, nessa paranoia, até já existam estudos sobre o impacto nocivo do fumo em terceira mão. Dito de outra forma: os fumantes não são apenas perigosos quando estão fumando. Mesmo quando não fumam, o veneno que transportam nas roupas –uma combinação letal de benzina, metanal e nicotina– contribui para matar o parceiro.

Informa o Daily Telegraph que, em estudo recente da Universidade de Yale, os pesquisadores concluíram que bastam duas horas de proximidade com um fumante (sem cigarro aceso) para inalarmos o equivalente a 5 cigarros fumados. Moral da história? 

Haverá um dia, não muito distante, em que os fumantes habitarão uma cidade só deles, longe da civilização moderna. Se forem velhos e fumantes, melhor ainda: nós, os jovens e os saudáveis, não precisamos de más companhias.

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