João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu drogas

Guerra às drogas nem acaba com o tráfico nem destrói o problema

Legalização ajudaria a desmantelar as redes criminosas que prosperam, e matam, à margem da lei

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1. Será que devemos legalizar todas as drogas? Não falo apenas de descriminalizar o consumo. Falo de legalizar a produção e o comércio também.

Os filósofos Peter Singer e Michael Plant, em artigo para a revista New Statesman, respondem afirmativamente. Os argumentos merecem atenção.

Consumidores de droga, sempre haverá. Não porque são fracos ou imorais. Apenas porque são humanos. A busca do prazer, ou da evasão, sempre fez e fará parte da espécie.

Não aceitar a imperfeição humana é declarar guerra à sua própria natureza —o esporte favorito de tiranos e ditadores.

Ilustração de dois ouroboros com formato semelhante ao do símbolo de infinito. Um está em primeiro plano e lembra uma cobra coral com faixas nas cores preta, vermelha e branca. O outro é um pouco menor, está atrás do primeiro e foi desenhado apenas com linhas vermelhas sem preenchimento de cor.
Publicada nesta terça-feira, 11 de maio de 2021 - Angelo Abu/Folhapress

Começando pela descriminalização do consumo, isso permitiria tratar da dependência como se tratam outras doenças. A legalização da produção e do comércio ajudaria a desmantelar as redes criminosas que prosperam, e matam, à margem da lei.

Um mercado regulado, como acontece com o álcool e o tabaco, é a proposta dos autores. Certas drogas seriam vendidas em farmácias, outras em lojas autorizadas para o efeito.

O Estado garantiria a qualidade do produto e, logicamente, preços mais baixos para derrotar o mercado ilegal.

Sou sensível aos argumentos. Sobre a descriminalização do consumo, não tenho dúvidas: Portugal deu esse passo em 2001. Não foi o fim do mundo.

Pelo contrário: o consumo diminuiu e as doenças associadas ao vício baixaram. Haverá coisa mais desumana do que prender um consumidor?

Sobretudo quando a maioria deve ser ajudada e tratada?

Concordo com Singer e Plant: descriminalizar é o primeiro passo para que um consumidor seja reabilitado sem temer represálias judiciais.

Resta o segundo passo: legalizar a produção e o comércio. Como lembram os autores, foi Richard Nixon quem, em 1972, declarou as drogas o “inimigo público número um”. Décadas depois, a guerra não foi ganha.

Admito que sim. Mas será que podemos concluir que a guerra foi perdida?

Será que o objetivo dessa guerra é acabar com o negócio da droga —ou, em alternativa, conter o problema?

O que é válido para o consumo —a imperfeição humana— aplica-se com igual coerência ao tráfico: como garantir que, pela liberalização total do negócio, não haverá um aumento exponencial do consumo?

Segundo a Organização Mundial de Saúde, meio milhão de pessoas morrem por ano devido ao uso ilícito de drogas. Quantas vidas seriam perdidas se o acesso às drogas pesadas ficasse mais fácil? Mais 100 mil? Mais 200 mil?

Aliás, para continuarmos no puro cálculo utilitarista, bem ao gosto de Singer e Plant, será que as vidas que se salvariam pelo fim do tráfico compensariam as vidas perdidas pela liberação total?

Sobre estas questões, silêncio pesado. Esperava mais de dois filósofos que adoram fazer contas.

2. Uma pessoa pode ter feito todos os estudos. Mas nada nos prepara para o momento em que um filho de cinco anos, quase seis, pergunta casualmente: “Eu vou morrer?”.

Aconteceu de manhã, quando o levava ao colégio. Como um covarde, respondi à pergunta com outra pergunta: “Por que dizes isso?”.

Ele, mais corajoso do que o pai, não se intimidou: “Porque todas as pessoas morrem, não é?”. Chegou lá por silogismo, mesmo não sabendo o que isso é: “Todos os seres humanos são mortais. Eu sou um ser humano. Eu sou mortal”. Aristóteles teria gostado.

Eu, não. E nos segundos de agonia em que ele aguardava pela minha resposta salvífica, imaginei alguns planos de fuga.

A via religiosa: “Não, porque há uma outra vida no céu”.

A via científica: “Não, a medicina vai descobrir um remédio para isso”.

A via escolástica: “Define o que entendes por morrer”.

A via cética: “Não sabemos”.

A via Marvel: “Eu não vou deixar”.

Optei pela via geriátrica: “Isso só vai acontecer quando fores muito velhinho”.

Ele ficou satisfeito durante uns minutos. Depois, voltou ao ataque: “E aquelas pessoas que morrem muito jovens?”. Imaginei novos planos de fuga.

A via paranoica: “Com quem andas a conversar sobre esses assuntos?”.

A via oportunista: “Não comiam a sopa e faziam birras”.

A via ideológica: “Isso só acontece aos comunistas”.

A via circense: “Eram trapezistas”.

Felizmente, a viagem tinha chegado ao fim e ele lá foi, brincando com os colegas, como se o presente fosse eterno e aquele “memento mori” uma simples deambulação sem significado.

Mas as perguntas matinais vão voltar. E não há livro ou escola que nos prepare para isso.

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