João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Eleitores do Bolsonaro se identificam com discurso, não votam só contra o PT

Vença quem vencer o segundo turno, uma parte dos brasileiros não vai desaparecer com suas crenças e valores

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O mundo reage às eleições no Brasil. Eu sorrio. Sorriso pequeno, amarelo, quase envergonhado. Quer um exemplo?

Na revista New Statesman, o colunista Jeremy Cliffe lamenta: quem pensava que a pandemia seria a sepultura dos líderes populistas, errou feio.

Num país onde 700 mil pessoas morreram com o vírus e onde Jair Bolsonaro foi universalmente aclamado como um incompetente na matéria, como explicar que Lula não tenha vencido logo no primeiro turno?

Enfim. Deixemos de lado a questão mais óbvia: se a pandemia mostrou a incompetência dos líderes populistas, as consequências econômicas e sociais da pandemia podem ser um novo bálsamo para esse tipo de lideranças —como, aliás, escrevi nesta Folha em plena peste.

Mas a pergunta de Cliffe reproduz, na perfeição, um velho preconceito progressista que corrói qualquer análise sobre o chamado populismo, no Brasil ou fora.

É a ideia de que as eleições são um assunto racionalista, ou seja, dentro dos parâmetros que o próprio progressista estabelece "a priori" como racionais.

A imagem representa uma ágora grega, com pessoas debatendo política em praça pública nas antigas Politéias, que eram esboços das primeiras Repúblicas. A imagem no caso foi baseada na pintura "Discurso Fúnebre de Péricles", de Philipp Von Foltz, de 1852.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho - Angelo Abu

O cidadão, meditando profundamente sobre os candidatos, só pode votar como um progressista votaria.

Nenhum estudo sério confirma essas fantasias. Eleições são como um jogo de futebol —questão emocional, passional, às vezes selvática. Você não abandona seu time só porque ele perdeu alguns jogos.

Há razões que a razão progressista desconhece, eis o ponto. Creio que foram Roger Eatwell e Matthew Goodwin, no seu "National Populism", quem primeiro analisou esse fenómeno: para os progressistas, quem vota em Donald Trump (ou Bolsonaro, acrescento eu) está votando contra algo, não a favor.

É sempre um voto negativo, nunca substancial. Um voto de protesto —contra o sistema, a corrupção etc.—porque ninguém, em são juízo, pode sustentar posições conservadoras ou reacionárias (não são a mesma coisa) de forma honesta e autêntica.

Uma vez mais, nenhum estudo sério confirma essas novas fantasias. No caso de Trump, os eleitores escolheram o Donald em 2016 porque se reviram nos valores que ele dizia professar. Os eleitores queriam mesmo menos imigração, fronteiras mais seguras, mais policiamento nas ruas etc.

Como relembram Eatwell e Goodwin, oito em cada dez eleitores de Trump concordavam com a construção do famoso muro no México (que Joe Biden continua a construir no Arizona, só para lembrar aos distraídos).

O Brasil não é exceção. O voto em Bolsonaro não é apenas um voto antipetista (a explicação clássica de 2018). É um voto convicto e cada vez mais crescente daqueles para quem Deus, a pátria e a família são a estrutura ética e política da comunidade.

Moral da história?

Vença quem vencer o segundo turno, metade dos brasileiros não vai desaparecer da paisagem com suas crenças e valores. Continuará respirando, falando, discutindo, convencendo. Que fazer?

A pergunta não é nova. É até bem velha e remonta aos inícios da democracia liberal: como governar sobre uma diversidade de opiniões e concepções de vida, algumas bem radicais e insalubres, de forma a manter uma república livre?

James Madison, que se ocupou do assunto no "Federalista", deu duas hipóteses: é possível tentar remover as causas das facções; ou, então, controlar os seus efeitos.

Remover as causas das facções significa destruir a liberdade de opinião e de crença —ou, pior, obrigar todo mundo a pensar da mesma forma. Dois caminhos que terminam na tirania.

Melhor controlar os efeitos, aceitando essa diversidade como parte do jogo e protegendo as instituições democráticas de qualquer assalto majoritário —no Legislativo, no Judiciário, mas também na mídia, na universidade, na sociedade civil e até na casa de cada um.

Em teoria, a trilogia Deus, pátria e família não é problemática se não tentar esmagar todas as alternativas possíveis que convivem sob o mesmo teto constitucional.

Na prática, desconfie sempre de um político que diz o contrário: nenhuma democracia resiste quando uma metade tenta impor à outra metade como ela deve pensar e viver.

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