João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu LGBTQIA+

O que 'Dahmer: Um Canibal Americano' diz sobre a natureza complexa do mal

Série mostra que o mal é incompreensível, mas a escolha desse modo de ser não é

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Sempre tive uma certa simpatia por psicopatas canibais. Na ficção, não na realidade. A culpa é do dr. Hannibal Lecter, que me introduziu nos prazeres da gastronomia molecular. Fazer o quê?

Bom, talvez assistir à série de que tanto se fala, "Dahmer", na Netflix. Sentença rápida: recomendo. Sentença mais longa: a polêmica que se instalou não tem sentido.

Falo, sobretudo, da fúria dos ativistas LGBTQ que não tolerou ver um personagem gay matando e desmembrando outros gays. Poupem-me: a ideia de que um gay, ou um bi, ou um trans tem de ser um modelo de santidade é de um paternalismo reaça e arrepiante.

Gostei de "Dahmer", a história do serial killer que matou 17 pessoas em Wisconsin e Ohio, porque ela é uma investigação notável sobre o mal.

Cena da série Dahmer, em que, sob o ângulo de uma câmera no teto, o protagonista aparece deitado de costas em sua cama, de cueca, meias e camiseta, abraçado a um manequim masculino de vitrine.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho - Angelo Abu

A palavra, bem sei, tem ressonâncias religiosas, ou pelo menos metafísicas, que a nossa sensibilidade pós-moderna não tolera.

Só isso explica as tentativas permanentes de arrumar o conceito nas estantes estreitas da nossa compreensão. O mal é fruto da ignorância —o supremo sonho do racionalista.

Não, não, o mal é fruto da sociedade e da injustiça que existe nela —o supremo sonho do materialista. Absurdo. O mal é fruto de uma qualquer disfunção cerebral —o supremo sonho do cientista.

Tudo errado, novamente. O mal é fruto do abandono de Deus e da sua luz divina —o supremo sonho do crente.

O primeiro mérito de "Dahmer" está na forma como se vai aproximando de cada uma dessas explicações para as detonar de seguida.

Em teoria, Jeffrey Dahmer é uma vítima da ignorância, ou da família, ou de uma cabeça doente, ou até do abandono da fé —a sua conversão final arrisca essa hipótese.

Mas quando dissecamos o homem da mesma forma que ele dissecava os animais mortos que recolhia na estrada, descartamos saídas tão fáceis.

Dahmer sabe o que faz; a família era disfuncional, mas não mais disfuncional do que milhares ou milhões de outras; o cérebro não funcionava com aprumo, certo, mas psicopatas parecidos tinham legado a massa cinzenta à ciência sem resultados morfológicos promissores; e a descrença de Jeff como explicação final para a sua malignidade seria um insulto para agnósticos ou ateus, que não andam por aí palitando os dentes com um osso do vizinho. O que resta?

Resta o próprio Jeff, uma criação sublime do ator Evan Peters: quando o vemos e ouvimos, na sua lentidão vampiresca, quase sonâmbula, a primeira sensação que experimentamos não é medo. É tédio, um terrível tédio.

O filósofo Terry Eagleton, no seu ensaio "Sobre o Mal" (recém-lançado no Brasil pela Unesp), já tinha avisado: o mal é tedioso porque não existe vida nele.

O mal é destituído de vida interior. Essa é a razão, como se vê em "Dahmer", pela qual a intimidade, a verdadeira intimidade, é território interdito para Jeff.

O próprio toque físico —do pai, dos "namorados", de qualquer pessoa dotada de calor humano— é uma ameaça existencial: a verdadeira intimidade revela o que somos. O psicopata não tem nada para revelar, exceto o medonho vazio que o habita.

Esse sofrimento só pode ser aliviado quando refazemos o mundo à nossa imagem e semelhança —um ato de criação pela destruição, onde nos sentiremos finalmente em casa.

Como escreve Terry Eagleton, em passagem que poderia ser um cartão de visita para "Dahmer", o psicopata quer abrir os corpos dos outros para confirmar que também ali há o mesmo vazio que o consome.

O ensaio de Terry Eagleton, na descrição minuciosa do mal, tem um propósito: retirar-lhe a carga de mistério que tradicionalmente associamos à palavra.

Seguindo o raciocínio do filósofo, se dotarmos o mal de uma qualquer ininteligibilidade, isso significa, perversamente, que nunca poderemos responsabilizar o psicopata pelos seus atos. Ele é como é e não poderia ser de outra forma. É a sua natureza. Como culpar a natureza?

Entendo a preocupação de Eagleton, mas não vou tão longe: é perfeitamente possível manter que as raízes mais profundas do mal são incompreensíveis e, apesar disso, que a escolha desse modo de ser não é.

Basta olhar para a verdadeira figura trágica da série, o pai de Jeff (notabilíssimo Richard Jenkins), que nunca desiste de tentar saber em que atalho da vida o filho se perdeu. Já é um princípio de salvação saber que o atalho existe para qualquer um de nós.

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