João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Já fico contente se aquilo que não me matar me ensinar algo

'Como seria uma pessoa se nada de ruim tivesse acontecido com ela?'

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Os bons espíritos sempre se encontram. Mesmo quando não se encontram, fisicamente falando.

É domingo. Leio os jornais do dia. E, no site do Guardian, encontro uma pergunta de uma leitora –brasileira, por sinal– que me fez parar para pensar. E sorrir. "Como seria uma pessoa se nada de ruim tivesse acontecido com ela?".

Essa é a pergunta que Jane Moraes, de São Paulo, enviou para a coluna "Notes and Queries". É também uma pergunta que faço a mim mesmo vezes sem conta, sobretudo quando cedo à nostalgia da meia-idade.

Que tipo de pessoa eu seria se nada de ruim me tivesse acontecido na vida?

Seria o mesmo sem as minhas desilusões, meus fracassos, minhas doenças e meus mortos?

Não sabemos a resposta do jornal a Jane Moraes —ainda. E eu não quero usurpar o trabalho dos colunistas.

Mas, usurpando um pouco, posso negar que essa vida seria uma vida feliz?

Nesse capítulo, o filósofo Robert Nozick e a sua "máquina da felicidade" sempre me serviram de guia.

Imaginemos que existia essa máquina. E que qualquer um de nós podia ligar-se a ela, vivendo o resto dos seus dias em estado de pura felicidade (que Nozick identifica com prazer), sem ter sequer consciência de que esse estado não era "real".

Será que o leitor aceitaria essa existência?

Ou recusaria a máquina, preferindo este Vale de Lágrimas por onde deambulamos todos?

Exceções, sempre haverá. Mas quando formulo essa questão aos meus alunos de ética aplicada, a maioria recua de horror.

Sidarta Gautama, que viria a ser chamado de Budah, medita sentado sobre uma flor de lótus dentro de uma bolha, que o privou de todos os males na juventude.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 19 de junho de 2023 - Angelo Abu

É um horror justificado: se a felicidade e o prazer fossem os valores últimos da existência, a qualquer preço e em qualquer lugar, a máquina teria vasta clientela.

Mas não tem. O que significa que a felicidade que valorizamos é uma felicidade "autêntica", produto de um esforço real. E um esforço real em relação a quê?

Precisamente: aos desafios, aos problemas, às infelicidades. Aliás, a própria noção de felicidade implica um conhecimento do seu oposto.

Em rigor, a máquina de Nozick não garante felicidade ou prazer. Apenas um estado neutro, entediante, ignaro, sem mudança ou contraste.

Uma pessoa a quem nada de ruim tivesse acontecido seria, basicamente, uma pessoa a quem nada de bom teria acontecido. Ela estaria privada dos instrumentos emocionais para avaliar o seu estado, a sua história, a sua identidade.

Mas as infelicidades da vida não são apenas importantes para que possamos reconhecer e valorizar as eventuais felicidades. Elas servem também como lição e aviso para não as repetirmos como se fosse sempre a primeira vez.

Haverá pensamento mais lúgubre do que imaginar alguém que repete sempre o mesmo erro porque incapaz de se lembrar dos erros cometidos antes e de aprender com eles?

Não se trata aqui de evocar o conhecido clichê de Nietzsche de que aquilo que não nos mata acaba por nos tornar mais fortes. Sou mais modesto. Já fico contente se aquilo que não me matar me ensinar alguma coisa.

Lembro-me de conversar, anos atrás, com um amigo médico que estudava o estranho caso de pessoas que não sentem dor (analgesia congênita, eis o termo técnico da condição; existem alguns em Portugal).

Em teoria, pode parecer uma bênção, um milagre, uma espécie de superpoder.

Na realidade, é uma fonte permanente de acidentes, dos mais ridículos aos mais fatais. Como ele me dizia, é como imaginar um carro avançando em direção ao abismo porque alguém removeu o freio e escondeu todos os sinais de trânsito.

Uma pessoa a quem nada de ruim tivesse acontecido seria alguém que nada tinha aprendido. Até ser confrontada com problemas que, pela sua radical novidade, ganhariam contornos esmagadores.

Há momentos em que preferiria ter tido uma estrada limpa de obstáculos –os obstáculos da estrada e aqueles que eu próprio joguei nela. Acontecia muito nos verdes anos.

Mas agora suspeito que esses obstáculos estiveram lá por uma razão, ainda que essa razão me escape.

É um pensamento consolador, talvez falso, talvez não. Uma coisa é certa: se a minha vida pudesse ser rebobinada para que eu a pudesse viver sem esses obstáculos, minha resposta seria igual à dos meus alunos quando lhes proponho a máquina de Nozick.

Tão jovens e tão sábios.

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