João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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A lógica da besta: para conquistar a Europa, começar por Paris ou Berlim

União Europeia é definida, em grande medida, pela França e pela Alemanha

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1.

Cada um tem os ídolos que merece. Leio no Financial Times que o partido romeno de direita radical –o Aliança para a União dos Romenos (ALU)– escolheu como figura inspiradora para as recentes eleições europeias um tal de Vlad, o Empalador.

Se o leitor desconhece o personagem, eu dou uma ajuda: falamos de um príncipe do século 15 que lutou contra o Império Otomano em nome da fé cristã.

O simpático título de "empalador" é uma referência aos seus hobbies guerreiros: transformar os inimigos em espetadas de churrasco.

Essas práticas cruéis levaram o escritor irlandês Bram Stoker a ver nele um conde sanguinário que dormia no caixão durante as horas de sol e despertava ao anoitecer para atacar donzelas indefesas.

Pois bem: o conde Drácula pode voltar ao sarcófago. A colheita foi fraca. O ALU não venceu as eleições na Romênia (ficou em 3º) e, nesse sentido, ele representa bem o cenário geral do continente: muito barulho para nada. Ou quase nada.

Durante meses, houve uma histeria com os avanços imparáveis da direita radical na Europa. O tom lembrava a década de 30 do século 20, com o fascismo mesmo ao virar da esquina.

Não aconteceu. Os populares (EPP), os socialistas (S&D) e os liberais (Renew) ainda são a maioria no Parlamento Europeu. Ou, traduzindo em linguagem banal, os destinos da Europa ainda estão nas mãos da centro-direita, da centro-esquerda e do centrão europeísta.

Os dois grupos mais radicais —os conservadores e os reformistas— e a sigla Identidade e Democracia aparecem em terceiro e quarto lugares, respectivamente.

Tudo está bem quando acaba bem? Também não.

A União Europeia é definida, em grande medida, pela França e pela Alemanha. Sem exagero, podemos mesmo dizer que o "projeto europeu" é uma tentativa franco-germânica de evitar novos conflitos entre essas duas potências, que desde 1870 tinham o hábito desagradável de arrastar o continente para a guerra.

Isso significa que o futuro da Europa será definido pela evolução política interna da França e da Alemanha, onde a direita radical tem motivos para festejar.

A vitória estrondosa de Marine Le Pen, que levou o presidente Emmanuel Macron a dissolver a Assembleia Nacional e a convocar eleições legislativas antecipadas, pode ser um aperitivo para o prêmio maior: a conquista da Presidência em 2027, ou até antes.

Na Alemanha, a vitória dos democratas-cristãos também não esconde o resultado do Alternativa para a Alemanha (AfD), que ficou em segundo lugar e superou os sociais-democratas do atual chanceler Olaf Scholz. Eleições antecipadas no país não podem ser descartadas.

Na Europa, o nosso conde não teve pescoços suficientes para morder. Mas os pescoços que interessam estão dentro de portas porque essa sempre foi a lógica da besta: antes de conquistar a Europa, começar primeiro por Paris ou Berlim.

Cavaleiro medieval, do alto de seu cavalo, como S. Jorge, golpeia um dragão acuado no chão.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 10 de junho de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

2.

Criticar Israel pela sua conduta na guerra em Gaza é normal. Apoiar o Hamas e esperar pela vitória do grupo terrorista não é normal. Sobretudo quando falamos de verdadeiros progressistas –corrijo: de verdadeiras mulheres progressistas.

Saberão elas que o Hamas pretende transformar Gaza, e a totalidade da Palestina, numa espécie de mini-Irã?

E saberão elas o que acontece às mulheres iranianas que lutam pelos direitos humanos contra os dráculas de Teerã?

Para essas almas iludidas, aconselho "Tortura Branca", de Narges Mohammadi, recentemente editado no Brasil.

O livro é uma coleção de testemunhos e entrevistas com mulheres que o regime enfiou na cadeia, sem julgamento, para as torturar com total impunidade. Narges Mohammadi, Prêmio Nobel da Paz em 2023, é uma delas.

A "tortura branca" é uma especialidade dos teocratas: consiste em encerrar as mulheres em celas de trevas, onde o dia e a noite deixam de fazer sentido, visando o colapso físico e emocional das prisioneiras.

Os testemunhos são lancinantes, em especial quando as mulheres lembram a separação dos filhos, mas um ponto é comum a todas elas: uma coragem de aço perante a desumanidade do regime.

Essa coragem surge alicerçada numa profunda crença religiosa, o que não deixa de ser irônico: na solidão da cela, elas rezam, lembram passagens do Corão, apelam a Deus para que as ajude na luta contra aqueles que usam o nome de Alá em vão.

Moral da história?

Por incrível que pareça, é possível torcer pela derrota do Hamas e pela punição judicial dos israelenses que terão cometido crimes de guerra em Gaza.

O que não é possível é atraiçoar a grandeza das mulheres iranianas, apoiando os discípulos dos seus torturadores.

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