Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca
Descrição de chapéu Eleições 2018

O balão e o meteorito

Somos tão indiferentes ao nosso passado quanto uma rocha de cinco toneladas de ferro

Gostamos de acreditar que as grandes tragédias culturais são fruto de algum plano maligno, ou ao menos do confronto entre o bem e o mal. A realidade costuma ser mais estúpida: negligência e descaso são tudo que a natureza precisa para aniquilar as obras da cultura humana.

Foi assim com a Biblioteca de Alexandria, que não foi destruída pela sanha obscurantista de algum bispo cristão ou califa muçulmano, e sim como efeito colateral de guerras de conquista. E foi assim também com o Museu Nacional: não precisamos de Estado Islâmico ou Taleban para erradicar nosso passado; bastaram descaso e prioridades equivocadas. A natureza se encarregou do resto.

Uma das hipóteses para o início do incêndio é que tenha sido provocado por um balão. O balão é um pequeno sólido de papel colorido, invenção humana, que sobe aos céus. O divertimento singelo e irrelevante que ele proporciona traz, contudo, danos severos à natureza e ao restante da sociedade. É um símbolo que vem a calhar: uma cultura displicente, presa ao chamariz imediato e que, por isso, lega passado e futuro às chamas. Bilhões para a Olimpíada —evento que passou e não volta mais—, esmola para os museus.

Claro que o balão não agiu sozinho; encontrou condições favoráveis. Um museu que há anos não recebia nem sequer os míseros R$ 520 mil de que dependia para sua manutenção; a administração incompetente da UFRJ, que inclusive barrou propostas de investimento privado que poderiam salvá-lo; hidrantes sem água e bombeiros mal equipados; autoridades que sabiam do risco de incêndio desde 2004 e nada fizeram.

Dentre os tesouros do Museu Nacional estava o crânio de "Luzia", o ser humano mais antigo do qual tínhamos algum vestígio no continente americano. Com idade entre 11 e 13 mil anos, Luzia era nosso único ponto de contato com a infância esquecida de nossa espécie, perdida numa noite tão remota que nos assombra. Por algum milagre, o crânio dessa mulher primordial resistiu a todas as intempéries da natureza —chuvas, vento, erosão— e chegou até nós, intacta o bastante para que pudéssemos desvendar seus traços e entender um pouquinho melhor como o homem chegou à América. Tudo indica que não resistiu, contudo, à falência material e humana do Brasil e do Rio. Junto com ela, foram-se também múmias egípcias e andinas, registros de línguas indígenas já desaparecidas e até mesmo a sala onde foi assinada nossa Independência.

Em meio às cinzas, contudo, algo sobreviveu: o Meteorito do Bendegó. O meteorito, objeto natural, é um sólido de ferro de 5 toneladas que caiu do céu. É o símbolo do poder destruidor da natureza, absolutamente indiferente ao homem, que aniquila tudo aquilo que cruza seu caminho. A cultura humana e seus significados viram pó em uma noite; a pedra do Bendegó —que já cruzava o espaço sideral antes que a vida surgisse na Terra—​ permanecerá quando nós mesmos estivermos tão esquecidos quanto o povo de Luzia.

A cultura humana é frágil. O esforço civilizatório consiste em resistir ao processo implacável da natureza, mesmo sabendo que ele terá a última palavra. No Brasil, não. Por aqui a ação humana não resiste, ela auxilia a entropia do cosmos. Somos tão indiferentes ao nosso passado quanto uma rocha de cinco toneladas de ferro e as labaredas do fogo. Sem paciência para aguardar o próximo meteoro, acendemos o balão. O fogo nos consumirá a todos, mas que alegria ver a bolinha de papel voar!

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