Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

O crime do passado é não ser igual ao presente

Tentativa de apagar pensadores por suas limitações nos empurra para tribalismo estreito

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A Universidade de Edimburgo, na Escócia, decidiu mudar o nome da torre David Hume, que homenageia um dos maiores filósofos de todos os tempos (e também escocês). O crime de Hume, previsivelmente, é não ter sido um progressista do século 21. As passagens estão lá e não restam dúvidas: Hume era racista, acreditava que os brancos eram intelectualmente superiores.

Ocorre, contudo, que as diferenças entre raças não são um tema central de Hume. Pelo contrário, aparecem em notas laterais irrelevantes para sua contribuição ao pensamento e que jamais o ocuparam longamente. Eram, ademais, bastante comuns em sua época.

O racismo, diga-se de passagem, não foi privilégio apenas de brancos europeus. Exemplos de preconceito racial em outros povos são vários. Vejam o racismo do estudioso islâmico Ibne Caldune —século 14— que se referia dessa maneira a um povo supostamente inferior: “O país dos francos é situado na parte fria ao norte do mundo. O clima natural desta terra produziria, naturalmente, pessoas burras e ignorantes como animais, e muitos, como os eslavos, não têm religião e se vestem com peles”. Sua obra permanece como um esforço pioneiro e muito rico de pensamento sociológico.

“Podemos ler os escritos de Hume e aprender sobre eles no devido contexto, mas não há motivo para que o prédio mais alto do campus deva receber seu nome”, diz a estudante Elizabeth Lund no abaixo-assinado que motivou a mudança do nome. Não há motivo para homenagear um dos maiores filósofos da História e orgulho da Escócia? Assim como europeus atuais podem ignorar o preconceito de Ibne Caldune e honrá-lo por sua grandeza, qualquer pessoa pode admirar o pensamento de Hume.

Uma sociedade que não tem coragem de homenagear os seus melhores porque eles não foram perfeitos está fadada a decair sob o peso da mediocridade. Se hoje temos condições de avaliar os erros e bairrismos do passado, é graças ao esforço intelectual de gigantes como David Hume.

Com efeito, Hume muniu a humanidade (toda ela, em todos os continentes) de argumentos que muito contribuíram para vencer velhos preconceitos que se apresentavam como verdades inquestionáveis. A fragilidade de nosso pensamento indutivo, a brutal distância que separa fatos e valores. O pensamento de Hume, ousado até para os padrões atuais em sua disposição de colocar em xeque certezas e pressuposições, é um verdadeiro ácido contra as certezas.

Quando um erro ou crime é muito difundido em uma época, não cabe condenar um indivíduo apenas por tê-lo repetido. Cabe, aí sim, celebrar aqueles que, superando as limitações comuns de seu tempo, viram mais longe. Como no caso de um dos melhores amigos de Hume —e também escocês—, o pai da economia, Adam Smith.

“A Fortuna jamais exerceu de forma tão cruel seu império sobre a humanidade do que quando sujeitou aquelas nações de heróis ao refugo das cadeias da Europa, a malditos que não possuem nem as virtudes dos países de onde vieram, nem daqueles para onde vão, e cuja leviandade, brutalidade e baixeza os expõem com justiça ao desprezo por parte dos vencidos”, escreveu Smith, em “Teoria dos Sentimentos Morais”.

Se, pela primeira vez na história da humanidade, uma sociedade aboliu a escravidão e condena o racismo e o etnocentrismo, foi também graças ao pensamento de iluministas como Hume, Smith e outros. O processo que os busca apagar por suas limitações nos empurra para um tribalismo ainda mais estreito. Fora do discurso progressista não há salvação.

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