Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca
Descrição de chapéu Folhajus

Submeter uma menina vítima de estupro a tortura psicológica não é valorizar a vida humana

Uma menina teve negado o mais básico cuidado. Quem é pró-vida deveria lamentar

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Seja qual fosse o desfecho, nenhum seria bom, porque a situação é, em si, trágica: uma menina de 10 anos foi violentada e engravidou. Mas alguns desfechos seriam bem menos terríveis do que outros. Deveria ser uma decisão simples: uma menina vítima de tal violência, deve, antes de tudo, ter acesso a um aborto seguro o mais rápido possível.

É o que a lei brasileira garante. No caso da violência que é o estupro, entende-se que levar adiante a gravidez é um sofrimento psicológico injustificável para a mulher. No caso de uma menina, então, nem se fala. Pesa ainda o risco físico que a gravidez e o parto representam a um corpo que ainda não está preparado para isso.

Ativistas ligadas aos direitos das mulheres fazem protesto em frente ao STF em defesa de aborto da menina de dez anos que engravidou após ser estuprada pelo tio em caso de 2020 - Pedro Ladeira-20.ago.2020/Folhapress

Infelizmente, o papel nem sempre condiz com a realidade. Neste caso, revelado pelo site The Intercept Brasil, a ida ao hospital para terminar a gravidez não foi o início do fim do trauma e do sofrimento, mas sim seu prolongamento.

O hospital se recusou a realizar o procedimento. O Ministério Público entrou em ação para recolher a menina a um abrigo. Essa atitude é compreensível se tiver como objetivo garantir que ela estará segura contra seu agressor. Não deveria, contudo, interferir na celeridade em se conseguir o aborto. Não foi o caso. A custódia estatal impediu o acesso ao direito. A própria juíza que o autorizou justificou a retenção da menina não só por sua segurança mas também para garantir a segurança do feto.

A cereja no bolo ainda estava por vir. A menina de 11 anos (ela fez aniversário recentemente) ainda foi submetida a uma audiência com a juíza com requintes de crueldade. Perguntar se ela gostaria, como presente de aniversário, de "escolher o nome do bebê", ou se ela "acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?", é pura e simplesmente submetê-la a tortura psicológica.

Assim como estimulá-la a manter a gestação por mais algumas semanas. Para uma adulta já seria cruel. Para uma menina de 11 anos, que nem sequer tem a autonomia e o preparo psicológico para tomar esse tipo de decisão, é inominável.

Em casos como esse, o próprio tempo acaba por decidir, nem sempre (ou quase nunca) da forma mais humana. Em algum momento, conforme a gestação progride, o aborto vai se tornando cada vez mais arriscado. Caso opte ou seja obrigada a esperar, terá que se submeter a uma cesariana, com risco à sua vida e à sua capacidade futura de ter mais filhos. Não precisava ser assim; foram as autoridades brasileiras que o tornaram inevitável.

O Brasil tem liberdade de crença. Se alguém quiser acreditar que a vida de um feto de 20 semanas tem o mesmo valor da vida de uma menina de 11 anos, está em seu direito. Negar ou dificultar o acesso ao aborto garantido por lei, ainda mais submetendo uma criança a tortura psicológica, no entanto, extrapola a crença pessoal e viola o direito alheio. Não deveria ser difícil de entender.

Cada um que dificultou o acesso dessa menina a seu direito legal não difere muito de um fundamentalista que mata em nome de sua causa sagrada. No caso, a causa sagrada é o suposto valor inegociável da vida do feto, que supera inclusive o valor da vida da mulher e o respeito à lei brasileira.

Mesmo os oponentes mais ardorosos do direito ao aborto legal melindram-se para dizer com todas as letras que gostariam de proibi-lo inclusive em caso de estupro. Então recorrem ao atraso, ao assédio, às travas burocráticas. Em meio a essas evasões, uma menina, vítima de violência sexual, foi torturada e teve negado o mais básico cuidado. Quem é pró-vida deveria lamentar profundamente.

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