Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Falarás de aborto

Porque sua criminalização mata mais que qualquer política alternativa

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Discursar pela vida e adotar práticas de morte em massa é a variante mais letal da política do pânico e circo no Brasil. Discursar pela liberdade, perseguir vozes divergentes e violentar grupos vulneráveis, ou gritar pela segurança e implementar políticas de difusão da insegurança (e da sensação de insegurança) compõem esse repertório de dominação pelo ilusionismo.

A política do pânico e circo produz democracia com déficit de atenção, distraída pelo barulho e fúria gestados artificialmente em laboratório. Diante do pânico, mercadores da bala de prata vendem a mesma solução: criminalizar, prender, matar. Bolsonaro é ponto culminante, sem verniz bacharelesco, dessa história (veja suas "21 técnicas de matar em silêncio", coluna anterior).

Manifestação a favor do aborto na Argentina, país que descriminalizou a interrupção voluntária da gravidez - Martín Zabala - 4.nov.14/Xinhua

No país, 1 em cada 5 mulheres já fez aborto. 88% têm religião, 67% têm filhos. Realizam-se 57 abortos por hora, 500 mil por ano. Se mulheres que fazem aborto fossem presas, em torno de 3 milhões de famílias estariam sem mães em casa. Das mulheres que fazem abortos clandestinos e inseguros, metade acaba internada para tratar de complicações graves de saúde. Outras morrem (pobres, negras, indígenas e nordestinas na sua maioria).

As internações custam dezenas de milhões ao SUS. Procedimentos seguros causam, em comparação, internação de 5% das mulheres. O risco de morte materna no parto é 14 vezes maior que o risco de morte da mulher em procedimento seguro de aborto. A lei penal faz do aborto uma escolha cheia de riscos para mulheres e médicos. Bloqueia procedimentos seguros.

Esses e outros dados estão no relatório "Aborto: por que precisamos descriminalizar?", produzido pela Anis - Instituto de Bioética. O relatório resume audiência pública no STF, presidida por Rosa Weber, em 2018. Talvez o mais qualificado debate público sobre o tema na história nacional. Algumas participantes saíram dali ameaçadas de morte. Por falanges autoapelidadas de... "pró-vida".

Países que descriminalizaram o aborto nos últimos 40 anos, curiosamente, diminuíram o número de abortos. Aconteceu na França, em Portugal, na Romênia, na África do Sul. Não há notícia de país onde a descriminalização incentivou abortos.

Criminalizar o aborto nunca protegeu a vida. Mas multiplica a mortalidade materna, os custos do sistema de saúde e uma cadeia de outros efeitos sociais e individuais negativos.

Países que descriminalizaram aborto o fizeram por meio de políticas públicas complexas. Não subestimam a dimensão trágica da escolha ou a sacralidade da vida. Mas adotaram o que, de fato, previne aborto. Por exemplo: educação sexual; distribuição de contracepção feminina e masculina; políticas de assistência e de cuidado pré-natal e pós-natal; redução da desigualdade econômica e de gênero.

Os autoapelidados "pró-vida", ao mesmo tempo que gritam pela punição, costumam resistir a tais políticas preventivas. E a incoerência não termina. Costumam apoiar outras políticas que fazem crescer, por exemplo, letalidade policial. E costumam combater políticas de redução da pobreza, amparo da infância, inclusão de pessoas com deficiência etc.

Se você pensou em Damares Alves, a ministra que não se pronuncia sobre assassinato de menino de nove anos, por homens encapuzados, no interior de Pernambuco, mas mobiliza seu ministério e avião do governo para intimidar menina de 10 anos, grávida por estupro, a não realizar aborto legal, acertou. A figura gabarita na hipocrisia.

Se você pensou em Ives Gandra Martins, que se refere ao aborto como "direito de matar" em "abortários legalizados", ou "campos de extermínio", e considera assassinas uterinas 20% das mulheres brasileiras (as que já fizeram aborto), e que admite retoricamente que governos devam dar "assistência às mulheres que não têm condições e não querem filhos", mas que em sua vida profissional e intelectual nunca defendeu políticas sociais universais e os tributos correspondentes, acertou também.

Se não protegem a vida e dissimulam diante da morte, o que querem, de fato, os autoapelidados "pró-vida"? Para o filósofo americano George Lakoff, essa nada mais é que "uma estratégia de guerra cultural para conquistar e manter poder político." Pânico e circo para proveito próprio, em outras palavras.

A Constituição promete a inviolabilidade do direito à vida, assim como da liberdade e da igualdade, mas não define o início da vida. A constituinte de 1988 rejeitou essa opção redacional. Nem a ciência se permite traçar a linha, que restou à moralidade e à teologia. Regras de comunidades morais e religiosas não se sobrepõem às de uma comunidade política.

Quando se diz que aborto é "questão de saúde pública", não de código penal, a mensagem fica árida e inconclusiva. Melhor explicar o que significa: defender a vida de maneira honesta e concreta, não de maneira cínica e abstrata.

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