Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Uma defesa das bancas de heteroidentificação das cotas raciais

Há zero 'eugenia' em um colegiado munido de critérios e preparo prévio

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Quando eu entrei na filosofia da USP, em 2004, via ao meu redor uma turma que não refletia a diversidade racial de São Paulo. Hoje, graças à política de cotas raciais, o panorama é outro. As cotas produziram mais mistura racial num meio elitizado que costumava ser majoritariamente branco. Até onde eu saiba, não prejudicaram a qualidade do ensino.

Só que uma vez aceitas as cotas raciais, um desafio se impõe: como separar quem deve e quem não deve ter acesso a elas? Nas últimas semanas, vimos dois casos na USP em que candidatos pardos inscritos por cota racial tiveram sua matrícula negada, gerando indignação.

O Brasil é um país miscigenado, no qual a divisão da população no binarismo "brancos" e "negros" não dá conta da realidade. A própria categoria "negro", conforme usada hoje em dia pelo Estatuto da Igualdade Racial, é ampla e inclui até pessoas sem nenhuma gota de sangue africano, como são os mestiços de brancos e indígenas. E, no entanto, o racismo e a discriminação racial existem.

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Debate durante a Semana da Consciência Negra na USP - Adriano Vizoni - 13.nov.19/Folhapress

Uma política de cotas raciais baseada unicamente na autoidentificação é uma porteira aberta para a fraude. Se um branco de olhos azuis puder ocupar vaga de cota racial, logo logo todo mundo se identificará como negro e a política perderá a razão de existir. Sendo assim, é preciso algum tipo de filtro externo para separar quem deve e quem não deve ser contemplado pelas cotas raciais.

Ao contrário de outros países, aqui a identificação racial se dá pelo fenótipo: é a aparência de cada um que define, em cada contexto, como ele é identificado. Nos EUA, ter um avô negro pode já te colocar na categoria de negro, mesmo que você tenha traços brancos. No Brasil, não.

Logo, é preciso algum tipo de avaliação externa do candidato: é isso que fazem as comissões ou bancas de heteroidentificação. E aí mora o problema. Para algumas pessoas, a própria existência dessas comissões é já uma antessala do nazismo e da eugenia. Calma lá!

As diferenças de fenótipo são reais ou são fruto de nossa imaginação? Brancos e pretos têm diferenças observáveis de cor de pele, textura de cabelo, formato de nariz e outras? É claro que sim. Sendo assim, é possível tratá-las de forma mais ou menos rigorosa. Poderia ser um funcionário qualquer da universidade avaliando candidatos com base em seu "olhômetro" subjetivo (e facilmente corruptível). Ou pode haver um processo mais estruturado, com um colegiado munido de critérios e preparo prévio; eis as bancas de heteroidentificação. Zero "eugenia" aí.

Numa sociedade miscigenada como a brasileira é inevitável que, por melhor que seja, um sistema de cotas raciais irá, em alguns casos de fronteira, gerar resultados injustos, seja aceitando brancos ou rejeitando pardos. Para minimizar esses casos, é importante que os critérios de avaliação do fenótipo sejam comunicados com mais clareza e em detalhes aos estudantes e à sociedade. Dessa maneira, impedirão que estudantes se inscrevam na cota racial de boa fé e recebam a má notícia de sua desclassificação lá na frente.

A política de cotas cumpre um papel positivo no combate ao racismo e promove mais diversidade racial nas universidades. A necessidade de comprovar a autodeclaração e a existência de casos de fronteira —uma minoria— não são motivos racionais para nos colocarmos contra a política. Mas o número dos barrados anualmente e os casos de injustiça flagrante mostram que o processo tem que melhorar e se tornar mais transparente.

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