Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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'Cry Macho' é lição de valores opostos à barbárie de Trump e Bolsonaro

Em novo filme, o conservador Clint Eastwood revê conceitos de masculinidade e heroísmo

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Antigamente, os velhos eram poucos e sábios. Hoje, que são muitos, viraram trambolhos. Não ensinam mais. Perdidos nas novas tecnologias, recorrem aos jovens que, agora, triunfam. O declínio das faculdades físicas e mentais levam os velhos à progressiva imobilidade. Não produzem. Não agem. Não sabem. Esperam, inertes, a morte.

Essa é uma visão estereotipada sobre os velhos que engendra preconceitos. Chamam isso de ageísmo, idadismo, etarismo – este, num sentido mais largo. Minha impressão é que essas palavras, bizarras, não muito conhecidas, pela própria variação, revelam o quanto esse preconceito passa despercebido, e o quanto há por fazer contra ele. De todas elas, prefiro gerontofobia, que é feia e tem um tom denunciador.

Clint Eastwood, em seu último filme, “Cry Macho”, ensina com a sabedoria dos velhos. Com 91 anos de vida, dirige e estrela o próprio filme. É um prodígio, sem dúvida, e talvez seja um recorde. Mas não deve ser visto com indulgência – é bom para um velho —, ou apenas como curiosidade – como conseguiu filmar e representar com essa idade? —, o que seria apenas uma forma de preconceito.

A velhice é uma preocupação já antiga para ele. No ano 2000, Eastwood fez uma formidável demonstração de quanto os velhos podem ser essenciais, em “Cowboys do espaço”. Agora, perscruta, em filigrana, a relação da velhice com o mundo.

“Cry Macho” forma um díptico com “A mula”, que ele também realizou e estrelou em 2018. Ambos têm a forma de um road movie, ambos foram filmados no Novo México e ambos inserem o americano, o gringo, em relação com um meio mexicano. Nos dois, o protagonista é velho, mas tem a sabedoria, a habilidade no lidar com coisas, animais e seres humanos.

Porém, “A mula” possui um tom de gravidade bem diferente de “Cry Macho”. A verdade, nas relações humanas, sempre captadas com tanta delicadeza por Eastwood, é vista agora com um olhar jovial.

“Cry Macho” não é exatamente uma comédia: é um filme em que o diretor ancião se diverte, passando leveza ao espectador. O velho cowboy não pode mais se meter em brigas violentas: se ele tentasse fazer isso, as cenas seriam ridículas. Escolhe então astúcias que surpreendem. Avança também num andamento calmo, mas que prende o espectador.

É verdade que Eastwood nunca foi um cineasta da precipitação, da rapidez. Sempre expôs tudo com sossego, para uma assimilação plena das cenas. Mas neste filme, há um degustar mais fino e vagaroso, que fascina o olhar. As paisagens integram-se na poesia do enredo (assinalo sobre essa questão um recente livro brasileiro, de Dirceu Marins, de grande qualidade, pela editora Dialética: “Paisagem e deriva no cinema de Clint Eastwood”).

A ética está no estopim da trama: o herói, Mike Milo, cowboy aposentado, deve alguma coisa para alguém, seu antigo patrão – mesmo que ele seja “um homem pequeno, fraco e sem coragem”, como Milo lhe diz na lata. Mas deve, e isso é o bastante. É esse rigor moral que o faz se empenhar como ninguém na missão que lhe é assinalada. E, como sempre, desde pelo menos “Rota suicida”, de 197 7, a tarefa será cumprida.

O filme se inicia com o fracasso da velhice. Uma das primeiras frases, é a do patrão despedindo Milo: “Você não é uma perda para ninguém. É hora de novo sangue”. Porém, a missão de Milo lhe dá a possibilidade de se renovar, ao mesmo tempo que retoma antiga obsessão de Clint Eastwood, obsessão que surge desde os primeiros filmes dirigidos por ele, e que lhe vem das utopias dos anos de 1960 e 1970.

Clint Eastwood é republicano, conservador, apoiador de Donald Trump. Felizmente, os filmes que dirigiu não o são – em sua quase totalidade. Muito pelo contrário. Eles nos falam de uma desconfiança para com os agentes perversos da ordem estabelecida, dos xerifes corruptos, dos políticos indignos. Em contraponto – e isso desde o primeiro western que dirigiu, “O estranho sem nome”, de 1973 – escolhe como sua a sociedade de marginalizados – prostitutas, anões, travestis, negros e, sim, mexicanos – como o núcleo em que as autênticas relações humanas podem se dar. É uma busca pela utopia harmoniosa.

Não que se preocupe nada com o politicamente correto: está velho demais para isso. Em “Cry macho”, os policiais mexicanos são vistos como corruptos dentro de uma sociedade mafiosa. Os americanos, porém, não são mostrados de modo muito melhor. E é numa pequena aldeia mexicana, isolada e esquecida, que o gringo, fiel a si mesmo, vai encontrar a humanidade generosa que não está em nenhum outro lugar.

Aos 91 anos, o rosto de Clint Eastwood impressiona. A pele é fina, um pergaminho vincado por rugas, que adquire a beleza da velhice. O corpo é curvado, o andar, prudente, para não dizer trôpego. As mãos são nodosas. Em certos momentos, esse ser frágil parece que vai se quebrar. A precariedade da existência o acompanha.

“Cry Macho” é, ainda, uma revisão sobre os valores masculinos da proeza, do vencedor, daquilo em que Eastwood foi, tantas vezes em seus filmes: o herói. Mike Milo diz: “Essa coisa de macho é superestimada. Apenas pessoas tentando mostrar que têm coragem. É como qualquer outra coisa na vida: você acha que tem todas as respostas, então você percebe que, conforme envelhece, não tem nenhuma delas.”

Os populismos sempre cantaram a virilidade, a brutalidade, o heroísmo, a exclusão das minorias. O atual governo brasileiro elegeu-se apoiado nesses valores – e Donald Trump também. “Cry Macho” é uma bela lição de valores opostos a toda essa barbárie.

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