Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli
Descrição de chapéu Séries

Se a vida for uma série, a temporada atual não está com nada

Muleta nestes tempos de isolamento, o cinema e a televisão andam deprimentes

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Que série você está vendo? Viu algum bom filme?

Séries e filmes têm sido grande muleta nestes tempos de isolamento. Pode ser só uma impressão, mas acho que tanto séries como filmes andam deprimentes. Os premiados do Oscar não são lá divertidos.

Nossa depressão é, nesse sentido, diferente da outra, da Grande. Depois da crise de 1929, o cinema explodiu em maravilhosas comédias elegantes ou irreverentes. Apareceram monstros fantásticos que permanecem até hoje na cultura. Coincidindo com o surgimento do filme sonoro, multiplicaram-se os musicais; a aventura em selvas exóticas e perigosas e o mundo dos gângsters levavam a alma para muito longe da realidade feia.

Drácula e Frankenstein, King Kong e Scarface, Lubitsch e os irmãos Marx, Fred Astaire e Greta Garbo viveram grandes obras naqueles tempos. Hoje, é o deprimente sobre o deprimente.

Não discuto a qualidade, que pode ser alta. Mas, se não aguento nem as notícias de jornal, como vou encarar “Meu Pai”, que retrata um octogenário avançando na demência; ou “Them”, que todo o mundo diz ser terrível? “Nomadland”, filme curtido em bons sentimentos, cheio de gente boazinha em um país lindo, livre e solto, não é exatamente eufórico.

Tenho vontade de ver “Meu Pai”, “Them” ou outros, mas chega na hora, fico enrolando —e acabo voltando para “O Diabo a Quatro” ("Duck Soup") ou “O Picolino” ("Top Hat").

As séries são uma experiência cinematográfica. Não se confundem com as telenovelas. Filmes em episódios existiram desde os tempos mais antigos do cinema mudo. Feuillade, Volkoff, Fescourt (e seu extraordinário “Os Miseráveis”, de 1925), foram mestres de séries destinadas ao cinema.

Nos anos de 1940 e 1950, os “serials”, criados para jovens, vinham em capítulos de uns 15 minutos, se tanto, que acompanhavam os longas. Permanecia o suspense durante a semana inteira: como o herói iria escapar de uma situação fatal que sempre concluía cada episódio?

O que ficou mais na minha memória foi “Marte Invade a Terra”, de 1945, com o monstro púrpura (púrpura só no nome, porque a produção era em preto e branco) matando as pessoas e tomando seus corpos.

A televisão estimulou as séries, mas não as transformou em produtos televisivos: continuaram concebidas como grande cinema, e “Além da Imaginação” (sobretudo na sua versão original, 1959-1964) ou “Alfred Hitchcock Apresenta” (1955-1962) são —entre outras— fenomenais obras-primas.

O streaming provocou uma verdadeira febre das séries, fazendo brotar algumas magníficas.

No topo da minha lista de séries (em streaming ou não): “O Pequeno Quinquin” (Bruno Dumont), ”A Escuta” (David Simon), “Inspector Morse” (Colin Dexter), “Un Village Français” (Fréderic Krivine), “House of Cards” (Beau Willimon), “Dexter” (James Manos Jr.). Mas citar apenas essas é trair tantas outras.

No século 19, os jornais publicavam longas histórias em capítulos, que prendiam o público e o deixavam ansioso pelo próximo número: eram os folhetins. Esses capítulos, porém, podiam ser enfeixados em um só volume, tornando-se um romance: foi assim, por exemplo, com "Crime e Castigo" de Dostoiévski ou "Os Três Mosqueteiros", de Alexandre Dumas. O folhetim estava no romance, e vice-versa, sem discrepância fundamental.

Entre a série e o filme não ocorre a mesma coisa. Se é possível criar um livro juntando todos os capítulos de um folhetim, é impossível fazer um filme reunindo todos os episódios de uma série. Posso maratonar uma temporada inteira, está claro, mas a experiência não é a mesma do que assistir a um filme.

Neste, é preciso fechar tudo em uma hora e meia ou duas horas que é, mais ou menos, a média de duração. Chega-se, às vezes, a três horas, ou mesmo quatro, mas a partir daí passa a ser muito difícil aguentar.

Esses limites de duração impõem uma unidade de tempo. É preciso que tudo se enfeixe em um período determinado. Daí, no final, o impacto de algo conclusivo, que se impõe à nossa inteligência e sensibilidade. Daí também a solicitação imediata de um retorno reflexivo, que vai do elementar “gostei” ou “não gostei”, a um desejo de compreensão mais profundo.

Com séries, antes do “gostei” ou “não gostei”, há o estou —ou não— gostando. Essa diferença indica, por si só, a adesão do espectador ao desenvolvimento progressivo em episódios, tão diferente do filme.

“Você não tem alguma série boa para me indicar?” Todos nós já ouvimos e já fizemos essa pergunta. O período de abstenção, quando não há mais séries que nos interessam para assistir, é bem frustrante. E, quando a série amada termina, surge o sentimento de orfandade: não teremos mais esses personagens e essas situações que conviveram conosco por tanto tempo.

Isso lembra a sensação desorientada quando se termina um romance que nos apaixonou. Ela é diferente do caráter conclusivo do filme ou do teatro, porque o livro e a série produzem um envolvimento no tempo que faz o leitor, ou o espectador, permanecerem ligados a eles, vivendo uma experiência progressiva que promete durar. A vida cotidiana e os capítulos terminam entrando em um mesmo fluxo de expectativa e de vivido.

Se a vida for uma série, a temporada atual não está com nada.

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