José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Planeta queima, Folha assopra

Leitores pedem mais destaque para a crise do clima e demissão de colunista

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“A atividade humana está alterando o clima da Terra de maneira ‘sem precedentes’ em centenas de milhares de anos, com algumas mudanças já inevitáveis e ‘irreversíveis’, alertaram cientistas do clima.”

“Países atrasaram tanto a contenção de emissões de combustíveis fósseis que já não podem mais interromper a intensificação do aquecimento global pelos próximos 30 anos, ainda que exista uma janela para prevenir o futuro mais angustiante, concluiu um grande relatório científico da ONU.”

“Pela primeira vez, os cientistas do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU) quantificaram em um relatório o aumento da frequência e da intensidade dos eventos extremos ligados às mudanças climáticas.”

Se é pelo dedo que se conhece o gigante, os primeiros parágrafos do noticiário mais importante do ano sobre a crise do clima mostra como o assunto está longe de um senso comum. As três aberturas acima foram cometidas por, respectivamente, The Guardian, The New York Times e Folha. A diferença de tom não é pequena: o apocalipse está próximo para o diário britânico; políticos precisam acordar antes que seja tarde segundo o americano; a ciência mostra que algo ocorre, diz o brasileiro.

Ilustração Carvall publicada no dia 15 de agosto de 2021. Nela um globo terrestre amarelo e vermelho, esta dentro de uma frigideira que esta sobre o fogo.
Carvall

O destaque da notícia nos três jornais também apresentou muitas diferenças. Valendo-se do fuso horário, o Times deu a notícia como manchete na edição impressa de segunda-feira (9) e manteve o assunto na capa no dia seguinte. O tratamento no site foi semelhante. O Guardian apurou o conteúdo do relatório com políticos e ONGs e adiantou que o tom do alerta seria grave já no domingo. Deu duas manchetes seguidas no impresso e 12 títulos em seu site apenas na segunda, além de um vídeo.

A Folha foi bem mais econômica. Resolveu a questão em três textos. No site, na segunda de manhã, o assunto não aparecia nem no primeiro scroll, a parte de cima da Home Page, mais nobre e de maior audiência. Onde estava, a chamada tinha peso parecido com o dado para uma nota sobre venda de Porsches no Brasil. O título principal dizia apenas que a “crise climática já agrava secas, tempestades e temperaturas”.

Em crítica interna. este ombudsman observou que o tratamento não condizia com o tamanho da notícia e que a comparação com a mídia internacional e até com concorrentes locais não era favorável. O destaque aumentou um pouco nas horas seguintes e a palavra “irreversível” foi acrescida ao enunciado original.

Na terça, em seu impresso, a Folha preferiu dar manchete para o desfile militar no bananal de Jair Bolsonaro. Clima virou um título, na parte debaixo da Primeira Página, em uma coluna. O Bolsa Família reloaded do presidente candidato mereceu duas colunas. Há, é claro, problemas em demasia no país, mas a opção da Folha restou entre as exceções em um dia importante.

Dos concorrentes diretos O Globo e O Estado de S.Paulo aos grandes jornais de Estados Unidos, Reino Unido e Europa, incluindo os econômicos The Wall Street Journal e Financial Times, todas as manchetes foram ocupadas pelo documento do IPCC. Com ou sem alarmismo, mas refletindo corretamente a amplitude do problema, a dimensão da notícia.

Leitores reclamaram. Alguns em tom ativista, cobrando da Folha comprometimento com a causa ambiental. Outros com pura preocupação, aquela que se sente diante do noticiário já quase diário de incêndios florestais, ondas de calor, inundações e secas pelo planeta. O temor que várias cidades brasileiras já sentem diante do racionamento de água. E o que vamos sentir todos daqui a pouco diante da falta de energia se o governo federal mantiver a incompetência de hábito.

No meio de tudo isso, surgiu um prenúncio de mudança. O jornal, na terça, padronizou que os eventos extremos devem ser tratados preferencialmente como “crise do clima”. Na quarta, porém, mais uma revolta se instalou na caixa de entrada. Leandro Narloch, de volta à Folha, repetiu argumentos negacionistas para falar de “aquecimento global” em sua coluna de reestreia.

Leitores furiosos listaram as polêmicas que cercam o jornalista conservador. Chamaram-no de homofóbico e racista. Pediram sua demissão, anunciaram o cancelamento de assinaturas do jornal e do UOL.

O episódio reforça as contradições da Folha na cobertura do clima. Sua brava equipe de Ciência faz excelente trabalho, tem bons analistas e cobertura consistente da Amazônia, mas isso é pouco para enfrentar um desafio multidisciplinar.

Crise climática precisa virar real prioridade, pauta que se impõe ao público pelo simples fato de que ela irá se impor de qualquer maneira. Não é mais questão de acreditar ou não em cientistas ou de pirralhas anunciando o fim do mundo.

O país está na berlinda na questão ambiental. A Folha não precisa ficar junto.

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