José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Dias em que vivemos em perigo

Bolsonaro vai ao extremo, e sociedade civil entra em modo de emergência

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Jair Bolsonaro, que gosta de limitar o Estado de Direito a um campo de futebol, simplesmente não parou na linha de fundo da Constituição. Foi bem mais longe, chutou a bola no mato, a ponto de nenhum gandula, institucional ou do centrão, ter condições de buscá-la.

Em termos menos boleiros, o presidente da República afirmou mais de uma vez na última semana que cogita atuar fora dos contornos legais de seu cargo. Em termos práticos, Bolsonaro declarou e reiterou que pode patrocinar um golpe de Estado.

Se já levantou a plaquinha "eu já sabia", parabéns, você não está sozinho. A questão agora é saber até quando o país suportará esse desarranjo político histórico ou em que dia viveremos versão tropicalizada da invasão do capitólio. Este parece ser o objetivo final do mandatário com seu discurso de ameaças, ofensas e mentiras. Datas para o evento circulam no WhatsApp.

A Folha escolheu bem as palavras para demonstrar o que está acontecendo. "Bolsonaro diz que pode usar armas fora da Constituição" foi sua manchete no impresso de quinta-feira (5). "Bolsonaro diz estar chegando a hora de deixar a Constituição, e Fux reage" foi o enunciado do dia seguinte.

Ilustração Carvall para coluna do Ombudsman do dia 08 de agosto de 2021.Nela um liquidificador, dentro deles letras vermelha e amarela.
Carvall

No sábado (7), o vocabulário chulo do presidente foi exposto no subtítulo da manchete em parte dos exemplares. Um palavrão usado por ele para se referir ao ministro Luís Roberto Barroso foi reproduzido entre aspas. Em quase três décadas de jornal não me recordo de fato semelhante.

(Eu me lembro, na verdade, de ter tentado dar um título com o mesmo palavrão em um longo relato dos protestos em Buenos Aires durante a crise que derrubou Fernando de la Rúa, em 2001: "São todos uns filhos da puta". Não passou. Talvez em espanhol? Não passou. "Pena, foi a frase que mais ouvi nessa noite", lamentou o autor da reportagem, Clóvis Rossi.)

O jornal também usou um expediente raro, editorial de Primeira Página, com o título "Ensaio de ditador". O ponto baixo, porque sempre há um, foi ter acordado um pouco mais tarde para o manifesto da sociedade civil, que decolou no meio da semana com pesos-pesados do mercado e 250 assinaturas, alcançando, após horas, milhares de signatários.

Os principais concorrentes da Folha não foram tão explícitos em suas manchetes. "STF passa a investigar Bolsonaro por fake news antidemocráticas" e "Voto impresso sofre derrota; Fux corta diálogo com Planalto" foram as opções de O Estado de S. Paulo. O Globo se saiu com "Moraes inclui Bolsonaro no inquérito das fake news" e "Fux reage a ataques ao STF e cancela reunião com Bolsonaro". Repare que as ameaças do presidente à Carta não são citadas, apenas as reações a elas.

Os três diários fazem cobertura intensa e crítica dos acontecimentos, em alguns pontos até com a Folha em desvantagem. O que explica a diferença no tratamento da notícia, no entanto, é algo mais sutil do que a opção editorial.

Bolsonaro abusa. Fala aos borbotões. Como já discutido em coluna anterior, é preciso cuidado para não ser tragado por suas narrativas, expressão que resume qualquer coisa hoje em dia, e seus factoides. Os veículos de imprensa estão escolados. O Jornal Nacional, por exemplo, se esforça para minimizar a quantidade de tempo do presidente na tela. Lança mão de narrações em off e discurso indireto.

Ocorre que o país, nos últimos dias, chegou a um ponto insuportável. Deixar claro o que o presidente está fazendo se tornou um imperativo. Deixar claro o que as outras partes do processo político não estão fazendo também. Sociedade civil, Poder Judiciário e parte do Congresso entraram em modo de emergência.

Conto de fadas

Se temos uma geração que não sabe o que é um golpe, agora já temos outra que começa a imaginar o país como uma potência olímpica, sem memória dos tempos das vacas magras. O desempenho do time brasileiro nos Jogos de Tóquio é notável, com recorde de medalhas e uma coleção de personagens interessantes. Passamos a adorar surfe e skate e aprendemos que podemos abraçar os adversários e chorar com eles porque isso é esporte.

O sucesso deverá ter várias explicações, e uma delas pode estar na própria pandemia. Atletas vivem em ciclos, mais ou menos tempo faz muita diferença. Não realizar a competição, opção razoável do ponto de vista sanitário, seria tirar o propósito de anos de trabalho. Imagine o que seria desperdiçar uma Rebeca Andrade.

Do ponto de vista da mídia, a bolha contra a Covid-19 que segregou a comunidade olímpica, atletas, dirigentes e jornalistas, virou laboratório. Nunca o trabalho da imprensa e a produção de conteúdo foram tão controlados. Pouca mobilidade, pouco contato, poucos diferenciais. Muita rede social e muita comunicação direta das estrelas com o público.

É o futuro? Diante de jornais com orçamentos cada vez mais apertados, já é.

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