José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Quando os relógios empacam

Folha publica denúncia desatualizada e esquece o que é censura por horas

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Jornais diários, como o próprio nome diz, estão presos à lógica das 24 horas. A melhor edição de tudo o que aconteceu em um dia deveria estar naquilo que carrega certo ar definitivo, a edição impressa do dia seguinte, no papel ou em sua versão digital. Na prática, porém, essa melhor edição já nasce amanhecida. Tudo que está lá já foi lido. O fluxo jornalístico moderno torna o compasso dos diários uma espécie de luxo para poucos.

O momento é de troca frenética de manchetes; os grandes jornais do mundo estão com coberturas ao vivo alçadas à notícia principal desde o começo da guerra na Ucrânia. O britânico The Guardian tem profissionais baseados em Redações no Reino Unido, nos EUA e na Austrália se sucedendo sem parar na condução do acompanhamento. Em seu site, a luz do dia brilha a qualquer hora, literalmente.

No atual estado de coisas, portanto, chegar à manhã seguinte com uma notícia que só você tem pode ser um grande sucesso, um furo, por exemplo, tão exclusivo que ninguém conseguiu recuperar, ou sintoma de que algo que não está muito certo. A Folha, na última semana, protagonizou a versão negativa dessa experiência.

Na quarta-feira (16), pouco antes do meio-dia, o jornal publicou um título que resume a história: "Alckmin recebeu R$ 3 milhões em caixa 2 da Ecovias, diz executivo em delação". De acordo com o texto, a Polícia Federal investigava pagamento a Geraldo Alckmin relatado pelo ex-presidente da Ecovias, a concessionária responsável pelo sistema Anchieta-Imigrantes, em São Paulo. A matéria vinha na esteira de outras reportagens da Folha sobre a delação, que expôs políticos de vários partidos e denunciou um cartel nas concessões de rodovias paulistas. Todas em gestões do PSDB, nas últimas décadas. Pelo acordo, empresa e executivo vão desembolsar R$ 650 milhões para não serem processados.

Cerca de duas horas após a publicação da Folha, o Estado de S. Paulo recuperou o caso, mas com uma diferença importante: a Polícia Federal já havia concluído a investigação sobre o ex-governador em fevereiro, apontando falta de provas que corroborassem a palavra do delator. A Folha manteve sua versão, que acabou publicada no impresso de quinta-feira (17). Só que, também na manhã de quinta, o Valor Econômico trouxe informação ainda mais atualizada sobre o episódio: a Justiça Eleitoral já tinha arquivado o inquérito contra Alckmin, por falta de provas, no dia 10 de março.

Ilustração de uma grande tesoura preta cercada de pequenas tesouras pretas, como um jogo de recorte e cole. O fundo é todo branco.
Carvall

Diante das evidências, no começo da tarde a Folha publicou uma nova reportagem, dando conta do arquivamento. Antes disso, porém, o estrago já estava em curso em torno do ex-governador, provável vice na chapa presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva. Alicerçado na revelação caduca, o jornal repercutia a nova saia justa para os petistas e ainda encontrava um bate-boca de 2018 entre Alckmin e Guilherme Boulos para explorar.

Em crítica interna, observei que a apuração da Folha se mostrara defasada ou que, talvez, o jornal tenha se deixado levar por um vazamento seletivo. Pontuei também que o ciclo noticioso se encerrava desequilibrado e que era preciso refletir e reapertar os parafusos, dado que o ano eleitoral promete confusões de toda sorte, inclusive delações e operações requentadas.

Em resposta, o editor de Política, Eduardo Scolese, afirmou que havia interesse público na divulgação da delação e que o processo corre sob sigilo, o que dificulta muito o trabalho.

Questionada, a Secretaria de Redação diz que não via necessidade de correção da reportagem, em que pese ter sido publicada flagrantemente desatualizada. O texto, porém, acabou sendo reformado no site na noite de sexta-feira (18).

No lugar de publicar um Erramos, a Folha preferiu voltar no tempo.

Censura nunca mais

Não é fácil explicar para os mais jovens o que foi a censura durante a ditadura. Há até quem veja com tolerância certa dose de proibição, mesmo sem compactuar com delírios bolsonaristas. Para quem a suportou, no entanto, a simples discussão de não ter acesso a alguma obra por determinação do Estado é incabível.

Foi surpreendente perceber que a Folha levou horas na terça-feira (15) para chamar de censura a censura estabelecida pelo Ministério da Justiça ao filme "Como se Tornar o Pior Aluno da Escola". O primeiro texto sobre o assunto tinha um título que quase naturalizava a exceção: "Filme que Mario Frias chama de pedófilo deve sair do streaming, decide governo". Decide governo?

A palavra apareceu em um título da Folha como substantivo apenas à noite, quando o editorial "Censura de volta" foi publicado. Surgiu também na boca de interessados ouvidos pelo jornal, como Danilo Gentili e Globo. Também não foi esquecida pelos títulos do impresso, na manhã seguinte.

Às vezes, o tempo resolve.

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