José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu jornalismo mídia Rússia

Repórter, espécie ameaçada

Jornalismo atual abre muitas possibilidades, até mesmo a de extinção

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Tropas se movimentam na Europa. CNN 24 horas por dia. Vem à memória a Guerra do Golfo, quando a emissora americana, em feito inédito, cobriu o conflito ao vivo. A lembrança deveria ser apenas Bernard Shaw e Peter Arnett abaixando a cabeça na hora das bombas, mas a verdade é que foram madrugadas de material não editado, transmitido sem narração ou explicação. Som ambiente e imagem, jornalismo cru. Em uma dessas longas noites, um dos primeiros pilotos americanos a aterrissar após combate afirma com naturalidade: "Muito emocionante, parecia um jogo de futebol". Nunca esqueci essa frase, de tão absurda. Anos depois, já jornalista, citei-a em uma apresentação de Super Bowl.

Correspondentes de guerra estão na linha de frente de novo, abaixando a cabeça e levantando fatos. CNN, TVs, agências, sites e jornais do mundo inteiro driblam bombas, internet sabotada e a censura russa para informar o que ocorre na Ucrânia. A diferença agora é que dividem a atenção com milhões, para não dizer bilhões de outros supostos repórteres e analistas. No Brasil do BBB, quem primeiro deu a notícia da invasão, constatou a Folha, foi o perfil Choquei, cuja credencial é agregar mais de 1,3 milhão de seguidores no Twitter. Deixou de lado a cobertura do reality show, até então sua especialidade, para iniciar uma série alucinada de postagens sobre o conflito.

No meio da torrente, na quinta-feira (24), surgiu a reprodução de um título da Folha: "Maioria dos brasileiros lutaria pelo país em caso de guerra, segundo Datafolha". Não havia link, mas a notícia existe, ainda que antiga e apenas uma indagação hipotética, sem relação com qualquer evento. Pouco antes, o perfil fazia um alerta: "Explosões em Chernobyl". Apenas essa frase. Em seguida, outra informação seca: "Fogo atinge prédio na Avenida Paulista". Na sequência, um pouco de opinião emprestada, mas com vídeo: "Craque Neto diz que Putin, presidente da Rússia, tem que morrer".

Quem acompanhou o noticiário nos últimos dias viu muita bobagem e fake news. Até emissora séria usando cenas de game para ilustrar a tela enquanto o opinador falava algo sobre Putin. O choque, sem trocadilho, das redes sociais com o jornalismo profissional nesses momentos é brutal.

Dean Baquet, editor-executivo do New York Times, perto da aposentadoria do cargo (por idade, tradição na empresa), afirmou em recente entrevista à New Yorker que "cada geração de jornalistas faz seu próprio jornalismo". "E, francamente, faz melhor." Não falava de si, mas se encaixa na descrição. Primeiro repórter investigativo de origem e primeiro negro na função, vai deixar uma poderosa Redação, com mais de 2.000 profissionais, 10 milhões de assinantes e audiência global. Um jornal bem diferente daquele que recebeu há oito anos, com dificuldades financeiras e futuro incerto.

Ilustração mostra ícone de bomba aérea. Abaixo, ícones de redes sociais em verde e amarelo musgo.
Carvall

"Acho que a reportagem está, não quero dizer ameaçada de extinção, mas penso que sob ameaça." Para Baquet, vive-se uma era em que a força de dar a notícia não é mais plenamente respeitada, em que as redes sociais premiam comportamentos ácidos e opiniões gratuitas. O executivo demonstra certa preocupação moral com quem confunde o papel da profissão ou se vê premido pelos comentários na internet.

Não há dúvida de que jornais podem ser melhores hoje em dia, a começar pelos diversos recursos multimídia existentes. Mas é incrível como precisamos de pestes ou bombas caindo sobre nossas cabeças para entender que o clássico trabalho de repórter, não importa a tecnologia disponível, é imprescindível e vale cada centavo de investimento.

O problema é ninguém lembrar dos imprescindíveis também em tempos de paz.

Debate?

Baquet é o editor apupado pela própria Redação em 2020, quando o Times publicou artigo de um senador republicano que defendia militares nas ruas dos EUA na onda de protestos que ocorreu após a morte de George Floyd. A publicação do texto colocava os jornalistas negros da casa em óbvio perigo na cobertura. Até o publisher do jornal entrou na discussão para acalmar os ânimos. Já ouviu algo parecido?

Na última semana, a Folha publicou artigo de Flávio Bolsonaro cujo título não faria feio no Choquei, "Moro soltou Lula". O jornal, obviamente, apanhou mais que o filho do presidente. O PT em nota acusou a Folha de publicar fake news. Uma leitora pontuou que, além de desnecessário, o artigo era mal escrito. Difícil discordar. A argumentação era frágil, apelando para conclusões como a de o petista ser responsável pelos preços da gasolina na gestão de seu pai.

E aqui vem a questão, que nada tem a ver com a necessidade de dar espaço para todos os lados, satisfeita no dia seguinte, como de praxe: os leitores precisam aturar textos ruins em nome da pluralidade?

Em outras palavras, se o artigo é fraco, o debate, propósito de sua veiculação, foi enriquecido ou serviu apenas para a Folha se mostrar equânime?

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