José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Jornalismo chato como VAR

Relato automatizado de jogo na Folha prenuncia futuro anódino da imprensa

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"05' 2º tempo. Gol Japão. Ao Tanaka." Assim a Folha descreveu um dos momentos mais polêmicos da Copa do Mundo até aqui, o gol da virada do Japão contra a Espanha na quinta-feira (1º). Como sentenciou Luís Curro, colega de muitas jornadas de futebol bom e ruim, um lance que nos fez triste por constatar que nossos olhos "não têm mais valor".

O juiz, assim como o planeta que assistia à partida, viu a bola sair na hora do cruzamento de Mitoma, uma ação desesperada, mas que encontrou Tanaka na pequena área em posição para tocar para dentro do gol. O árbitro assistente de vídeo, vulgo VAR, viu outra coisa: a bola não passou completamente a linha de fundo e, portanto, não saiu do campo pela regra. Gol válido, alegria dos japoneses, espanto dos espanhóis e trabalho para a imprensa, para os especialistas de verdade e os de plantão, e até para a Fifa, que saiu em defesa de seu sistema com vídeos e explicações. Resumir toda essa novela a "Gol Japão" é o cúmulo da síntese.

Não foi apenas dessa forma que a Folha descreveu o bizarro momento de um Mundial de zebras e contusões, mas o relato telegráfico apareceu no Ao Vivo do site do jornal, que é feito de forma automatizada. Nem todos os duelos são acompanhados assim. Os de maior apelo, como os da seleção brasileira, têm descrição mais completa dos lances, pitacos de comentaristas e observações de quem está no estádio. O relato automatizado é burocrático, traduz em frases padronizadas eventos contabilizados via estatística, como cartões, escanteios e substituições, entre outros.

Na mesma partida, essa sequência do segundo tempo é especialmente patética: "25' Unai Simón cobra o tiro de meta para Espanha; 25' Suichi Gonda cobra o tiro de meta para Japão; 30' Suichi Gonda cobra o tiro de meta para Japão; 36' Suichi Gonda cobra o tiro de meta para Japão". Pelo descrito, mais de dez minutos de um medíocre gol a gol.

Ao registro inútil se soma o não registro. Na quarta-feira (30), a França com reservas apanhava da Tunísia. Mbappé e Griezmann entraram em campo para tentar resolver a parada e, de fato, chegaram ao gol nos acréscimos. O VAR anulou o lance por impedimento, mas depois que a transmissão já havia sido encerrada na França, causando confusão entre os telespectadores do país campeão mundial. Não há registro do gol nem de sua anulação ou qualquer outro detalhe no Ao Vivo do jogo na Folha.

Ilustração mostra canto de um campo de futebol, como se fosse um precipício, Um homem se equilibra na borda
Carvall

Seria apenas uma anedota entre outras tantas de uma cobertura grande como a do Qatar, não fosse o fato de apontar para um futuro incômodo. O jornalismo esportivo, assim como o econômico, é um dos que mais experimenta automatizações. São noticiários com eventos padronizáveis, possibilitando que robôs consigam organizar e redigir notas em formatos variados. Informação bruta em geral, que também seria feita de forma mecânica por um humano, como o sobe e desce da Bolsa ou os resultados de um campeonato. A mão de obra então poderia ser usada para atividades mais nobres e complexas, como discutir se uma bola superou ou não a linha de fundo.

Chegará a hora, no entanto, em que o VAR não permitirá mais qualquer discussão.

Desmata mas não cai

A notícia saiu na Folha e na maioria dos outros veículos na quarta-feira (30): "Desmate na Amazônia cai 11%, mas permanece acima de 10 mil km2". O desmatamento não caiu, ele cresceu exatos 11.568 km2, segundo o acompanhamento do Inpe. Cresceu, aliás, pela quarta vez consecutiva na gestão Bolsonaro. Então como caiu 11%? Os deuses da floresta recuperaram alguma parte?

O desmatamento na Amazônia desacelerou 11% em relação ao registrado no período anterior. Ainda que os verbos proporcionem leituras próximas, desacelerar não é cair. A coisa não melhorou. No máximo despiorou um pouco, como diria Vinicius Torres Freire. Concisão é importante no jornalismo, faz caber a informação em tamanhos que a tornem compreensível, palatável. Um dos riscos do processo, porém, é a simplificação, tirar o peso da notícia ou mesmo deturpar seu sentido. Obviamente, ninguém imagina que a área desmatada tenha se reduzido, ainda mais em uma era deletéria como a atual. É nisso que se alicerça a opção do jornal.

Ao mesmo tempo, usar o verbo cair transforma subliminarmente a notícia em algo positivo, ainda que haja a adversativa como ponderação. Como a maioria dos leitores não passa da leitura do título, a escolha deveria ter sido outra.

A observação é filosófica, talvez preciosista, mas reflete de certa forma a distância que a mídia, não apenas a Folha, guarda da crise do clima. O mais importante não é a pequena queda no ritmo do desmate, mas a Amazônia estar cada vez mais próxima do ponto de não retorno, como bem lembra a abertura da reportagem. É uma questão de inércia.

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