José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Barbie fio-dental

Em semana importante para as mulheres, jornais cometem ato falho sexista

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Segunda-feira (24) começou com festa e consternação. Ary Borges tinha acabado de marcar três gols na vitória do Brasil sobre o Panamá na estreia da Copa do Mundo, em Adelaide. Quase no mesmo horário, em Brasília, Flávio Dino anunciava a delação premiada do ex-PM que choferou para o assassino de Marielle Franco e Anderson Gomes, confessou sua participação no crime e reabriu a tampa do devastador episódio com novos detalhes.

A notícia mais lida da Folha naquela manhã, no entanto, passava longe do futebol valente das mulheres ou do feminicídio político que assombra certas esquinas da República. Em meio à enxurrada de títulos sobre o filme da Barbie, um enunciado se impunha insidioso no topo da lista dos textos de maior audiência : "Fio- dental brasileiro vira tendência nos EUA após ser adotado por estrelas de Hollywood".

O artigo é um copy, como se diz no jargão da Redação, um texto produzido e publicado originalmente pelo jornal The New York Times. É uma matéria de comportamento, que discute como a indumentária de inspiração brasileira ajuda a derrubar barreiras culturais e até parte das proibições em praias americanas.

Traduções em geral demandam adaptações. Uma edição bem feita analisa a necessidade de acrescentar contexto ou explicar expressões, por exemplo. A Folha achou por bem turbinar o conteúdo do artigo traduzido com um enunciado que fizesse referências ao Brasil, atitude razoável, mas também a mulheres famosas, que não constam do título original ("Who Gets to Wear G-String Now?", ou, em tradução livre, quem consegue usar fio-dental atualmente). E aqui começam os problemas.

A versão tropicalizada trouxe também fotos de celebridades, como Kendall Jenner e Sofia Vergara, a bordo de tangas e equivalentes. Uma galeria de 19 imagens, que contrastam bastante com as três fotos do artigo americano, de mulheres não conhecidas e em poses não exatamente sensuais.

Uma mulher vista de trás, usando um biquíni cuja estampa é formada por páginas de jornal. O fundo é formado pelas mesmas páginas de jornal em azul claro.
Carvall

O Globo e O Estado de S.Paulo, também com direito a publicar o conteúdo, não fizeram muito diferente, tascando as estrelas nos títulos e imagens de Kim Kardashian em suas edições. O jornal carioca foi explícito no enunciado, que finaliza com um ": veja fotos".

Moralismo à parte, é notável que os três maiores jornais do país sucumbam tão facilmente ao apelo dos corpos femininos. Não foi um lapso de percurso, a natureza da reportagem do Times foi alterada. As celebridades são um parágrafo do artigo, não seu cerne, como dão a entender as versões brasileiras no ar. Foram alçadas aos títulos, parece óbvio, para justificar as galerias de imagens e alavancar cliques.

Ainda mais incrível é tudo isso acontecer em tempos de ampla discussão sobre sexismo, do estudo em rosa sobre bonecas e feminismo embalado pelo filme, do embaraçoso contraste de tratamento das Copas masculina e feminina pela imprensa. Nenhum dos grandes jornais está presente na Austrália ou na Nova Zelândia, sedes longínquas da competição. Jornalismo custa caro e igualdade de gênero vale só até a conta chegar à mesa.

Barbie primeira-dama

A Folha enfim relatou o desconforto de alas do governo com a onipresença de Rosângela da Silva no entorno de Luiz Inácio Lula da Silva. E com uma chamada curiosa: "Janja atua como ‘algoritmo’ de Lula, despacha sem cargo e gera incômodo em aliados". Como escreveu a Piauí logo após a eleição, no ano passado, Janja é fluente em redes sociais e o marido não usa nem WhatsApp.

O tom da reportagem é bem menos agressivo do que o do texto publicado em junho pelo Estadão, que conferia à primeira-dama "poder de veto no governo" já no título. À época, vários ministros saíram em defesa de Janja nas redes sociais. Desta vez, Gleisi Hoffmann respondeu indiretamente à Folha, lembrando da reação conservadora ao filme da Barbie, que "mostra como a luta pelo protagonismo das mulheres e a ocupação de espaços de poder ainda é longa". Janja e sua ressignificação do papel de primeira-dama, prossegue a presidente do PT, contribui para combater o "machismo da mídia" e "incomoda muito".

Gleisi esquece de comentar o machismo do próprio partido e do governo, que barganham com o centrão principalmente postos ocupados por mulheres, sem falar na perspectiva de retrocesso da representação feminina no STF.

Ainda assim, tem um ponto quando nota o incômodo que Janja causa em setores da imprensa. Como se sua figura pública fosse desconectada do fato de ser casada com o presidente; ou que ele, duas décadas mais velho do que ela, deixou de repente de ser a raposa política atenta até às paredes.

Janja perturba pela intromissão assim como Michelle Bolsonaro irritava por ser submissa e, depois, ativo eleitoral. Nesta terra de machos, vulgar e violenta, talvez o que incomode é serem mulheres.

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