José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Precarizada, cobertura esportiva naturaliza a barbárie que é o futebol no país

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O jornal americano The New York Times anunciou na última semana que vai acabar com sua editoria de esporte. À Redação, o editor-executivo afirmou que a mudança é "uma evolução na maneira como cobrimos esportes". Entenda-se por evolução publicar em seus domínios material produzido externamente, pelo The Athletic, site especializado que o Times comprou no começo do ano passado por US$ 550 milhões. Parecia óbvio que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, dada a duplicidade em diversas coberturas. Ainda assim, é uma revolução no setor.

O próprio Times reconheceu o caráter drástico da mudança em reportagem que publicou na segunda-feira (10) sobre o fim de sua editoria, "um pilar do jornalismo esportivo americano". Um caderno, como se dizia no tempo do impresso, com excelentes jornalistas, prêmios Pulitzer no armário e uma coluna, "Sports of The Times", de causar inveja em qualquer um que já tenha se arriscado a escrever profissionalmente sobre esporte.

A Folha foi rápida na tradução e publicação do texto sobre o caso. Para além da cobertura de mídia, onde navega muitas vezes sozinha, um certo viés de confirmação: o jornal há tempos reduziu sua cobertura esportiva ao mínimo, para desespero de muitos leitores.

Situações muito diferentes. Enquanto a Folha frequentemente tem mais notícia nas colunas de opinião da seção do que nas reportagens, o Times contará com conteúdo produzido por 400 profissionais do The Athletic. Quem assina o site tem como primeira missão customizá-lo com algumas das 200 equipes que são acompanhadas. Diversidade de ideias, tão cobrada em outros cantos da internet, sucumbe fácil ao clubismo. Correr o risco de topar com assuntos aleatórios e eventualmente se surpreender deveria constar como opção.

A decisão do Times não versa apenas sobre uma questão econômica ou trabalhista (os profissionais do jornal são sindicalizados, os do site não, e a greve em Hollywood mostra o que isso significa nos EUA). A aquisição do The Athletic é parte de uma estratégia para aumentar o número de assinaturas com oferta de entretenimento e serviços, conteúdo distante do hard news. A imprensa mundial segue o figurino, e é por isso que os leitores também aqui no Brasil vêm sendo bombardeados atualmente com receitas culinárias, passatempos e testes de produtos.

Uma antiga e muito usada bola de futebol é focalizada pela mira de uma arma. O fundo é marrom.
Carvall

O movimento altera um paradigma importante. Para o jornal que escancarou o uso de esteroides no beisebol, abalando as estruturas da liga profissional mais tradicional dos EUA, esporte não está mais no escaninho de notícias, pelo menos não administrativamente. Republicar o excelente material do site é tarefa fácil. Complicado é perder a decisão editorial sobre conteúdo noticioso para outra Redação.

Se a consequência no caso do Times soa ainda teórica, a precarização da cobertura esportiva na Folha a torna evidente. O recente episódio da morte da torcedora palmeirense vítima de estilhaços de uma garrafa arremessada durante uma briga é exemplo eloquente do quanto o jornal abdica ao desmantelar sua estrutura.

Em uma aparente opção editorial, o noticiário foi para Cotidiano. Violência, afinal, é coisa para páginas policiais. A expertise, porém, não se materializou. O delegado informou que a jovem era de uma organizada e o namorado de outra para explicar sua presença no meio de uma confusão de torcidas. A frase foi acriticamente reproduzida não apenas na Folha. Dias depois, essa e outras conclusões foram contestadas pelo Ministério Público e criticadas pela juíza que mandou soltar um torcedor flamenguista, antes suspeito.

A reboque da versão oficial ficou também a reportagem sobre o enterro da garota. Segundo o relato do jornal, a cerimônia foi marcada pela emoção e pela presença da organizada à qual ela era filiada. Um vídeo reproduz fogos e sinalizadores lançados em sua homenagem. Nenhuma linha dos textos pondera que a torcida tem longo histórico de violência, integrantes condenados, que já foi banida dos estádios e até virou escola de samba para legitimar sua existência.

Como escreveu PVC, a morte estúpida de uma mulher de 23 anos choca como em 1995 chocou a morte de um adolescente em pleno Pacaembu. Entre os dois eventos, muitas outras vítimas e a falta de vontade política para resolver a questão. "O poder público tem de acabar com a violência. Não adianta simular competência e prender a garrafa", concluiu.

Naturalizar o ocorrido com uma cobertura burocrática é naturalizar a barbárie. Jornalismo é investigar, tentar entender as diferenças entre delegado e promotoria, os erros e a leniência das autoridades, a presença feminina crescente nas organizadas e até a razão para ambulantes preferirem vender cerveja em garrafas.

Alguém dirá que nada disso é esporte. É um equívoco, o mesmo que os jornais cometem ao acabar com suas editorias.

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