José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Jornalismo aos pedaços

Novas linguagens da mídia fragmentam à exaustão os grandes assuntos

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O 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública foi dissecado pelos jornais nesta última semana. O documento, cada vez mais relevante para o debate público no país, talvez não tenha tido antes tratamento tão abrangente. Apenas na Folha, 18 títulos no lançamento do documento, na manhã de quinta-feira (20), e outros quatro, incluindo repercussão e análise, nas horas e no dia seguinte. Uma das matérias mais lidas era puro serviço: "Veja as taxas dos principais registros de crimes em seu estado".

Conteúdo equivalente já havia feito sucesso na cobertura do Censo, no fim de junho. Reunia os principais infográficos relacionados ao amplo levantamento em uma única reportagem. Edições organizadas atraem e facilitam a leitura, nenhuma novidade. O que se entende por edição organizada no atual momento da imprensa, com novas linguagens, sistemas de buscas e redes sociais, é outra discussão.

Nos primórdios da transformação digital dos jornais, Redações eram instadas a produzir vários títulos para o mesmo assunto. Até então, textos coordenados de uma cobertura faziam sentido no conjunto, modulado pela disposição gráfica e hierarquização, nunca pela repetição. A arte do processo era balancear a informação através de espaços, pesos, capitulares, imagens e o que mais fosse necessário para nortear a leitura. Em uma tela, quase nada disso funciona. Em uma tela ainda menor, novos recursos para atração da leitura se tornam imperativos; repetição e redundância, antes pecados, consequência.

Não interessa mais por onde se chega à notícia, mas, quando nela, é preciso que o conteúdo dê a informação e algum contexto para seu consumo. A reportagem não é mais uma peça do quebra-cabeça, mas uma miniatura do todo. Está tudo lá ou pelo menos o mínimo para caracterizar a coisa.

Na prática, muitos títulos, muitos lides que repetem os títulos e muitos textos que repetem outros textos. Virou lugar-comum dizer que a maioria não passa dos enunciados das reportagens. A verdade é que, diversas vezes, não há muito o que explorar depois do título.

Uma chave preta com a palavra 'cobertura' indica o desenho de um boi branco que está  dividido em seus cortes básicos. Cada corte tem a palavra título em branco dentro de caixas vermelhas. O fundo é amarelo.
Carvall

Limão, limonada. Em dias de grandes coberturas, muita, mas muita limonada. Pelo tamanho do personagem e pelas circunstâncias da morte, o obituário de José Celso Martinez Corrêa demandou grande esforço dos jornais. Na Folha, com a notícia principal sendo divulgada no meio da manhã, em menos de três horas, 20 textos foram ao ar; já eram 40 no final da tarde e 55 até a meia-noite. Não entram na conta os anteriores, que não foram poucos, sobre o incêndio, a questão médica, a vigília dos amigos. Teve título até para o cachorro de Zé Celso, Nagô, que tinha inalado fumaça, mas recebeu alta do veterinário.

Não faltava assunto sobre o dramaturgo e seu entorno, mas a saída não deveria estar nos números. É um problema complicar a vida dos leitores publicando, por exemplo, cinco reportagens sobre o Teatro Oficina, algumas muito próximas em conteúdo. Ou discrepantes em certos aspectos, como sobre quem teria sido o maior responsável pelo tombamento do local nos anos 1980. É um luxo o jornal ter tido tantos artigos de personalidades do mundo artístico e reportagens analíticas aprofundadas sobre Zé Celso e seu legado.

A pergunta, no entanto, é se não era possível realizar uma edição mais orgânica, coesa, que sobretudo valorizasse o pacote de altíssimo nível, ou se isso já virou fantasia neste ambiente de competição atroz, "floodado", para usar um anglicismo destes tempos.

E pensar que os jornais, pouco antes da internet, combatiam a edição gigante, o texto prolixo, preocupados em encontrar espaços raros no dia cada vez mais curto dos leitores. Continuam lutando por eles, mas agora tendo ironicamente o excesso como solução.

De volta ao Anuário, Folha e O Globo decidiram selecionar como manchete do impresso, ainda uma ferramenta razoável para medir a priorização da imprensa, a queda no registro de mortes violentas, no menor patamar em 12 anos. O Estado de S.Paulo fez uma escolha mais curiosa, a disparada dos crimes virtuais. Parte da explicação para menos assassinatos é a mudança no campo de trabalho do banditismo: é mais barato e menos arriscado tungar dados e celulares do que bancos. Em artigo na Folha, os responsáveis pelo levantamento usaram um eloquente "apesar" antes de citar a redução de óbitos. Isso porque houve piora de todos os indicadores de violência doméstica, recorde de registros de estupros e crescimento exponencial dos estelionatos. "Os dados indicam que o Brasil ficou mais inseguro para a população negra, ..., assim como para milhões de crianças, mulheres e pessoas LGBTQIA+."

O enunciado da manchete da Folha falava de um aspecto do estudo, justamente o que não refletia essas ponderações. Em meio ao excesso, corremos o risco de estar cuidando da árvore enquanto a floresta cai.

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