José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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Lama das chuvas queima mais intensamente que lava de vulcão

Percebemos nossa verdadeira natureza quando a razão põe a nu a absurda desigualdade em que o Brasil se especializou

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Aeroporto de Viracopos. Quatro e meia da tarde. Terça-feira. O céu está cinzento e chove lá fora com a mesma dramática abundância que tem ensombrado as nossas almas. A cidade grande não nos deixa perceber como a chuva impacta a terra quando ela não é de concreto. Nenhuma notícia é suficiente.

Fui de carro até o aeroporto da cidade de Campinas e pude olhar por dentro esse efeito cortina que a chuva recria na estrada, separando carro e asfalto, como no teatro o pano de ferro separa atores e aplausos. A mesma diferença entre as notícias da TV e a encosta que resvala arrastando a vida.

Bombeiros, militares e voluntários trabalham no resgate de vítimas dos deslizamentos causados por forte chuva em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo
Bombeiros, militares e voluntários trabalham no resgate de vítimas dos deslizamentos causados por forte chuva em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo - Bruno Santos - 25.fev.23/Folhapress

Todos percebemos melhor a nossa verdadeira natureza quando a razão nos derrama a pobreza por cima e põe a nu a absurda desigualdade em que o Brasil se especializou. E a lama que resulta das chuvas nos queima nas mãos mais intensamente que a lava de um vulcão.

Stálin dizia que "a morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de milhões não é mais que estatística", e é nesse ponto que podemos entender que a dor dos outros nunca vem no jornal. Chico Buarque tenta nos ensinar isso faz tempo.

Vale a pena dizer que eu estava naquela terça-feira depois da semana do Carnaval. A mais cinzenta e triste entre todas as terças-feiras do ano, a única capaz de pedir meças às dores da internacionalmente aclamada "Blue Monday", a terceira segunda-feira de janeiro. Mas foi precisamente neste dia, neste ano, 17 de janeiro, que o novo relatório da ONG britânica Oxfam revelou que a pandemia tornou os bilionários do mundo muito mais ricos e levou muito mais pessoas a viverem na pobreza.

Enquanto a queda na renda dos mais pobres contribuiu para a morte de 21 mil pessoas por dia, as dez pessoas mais ricas do mundo mais que dobraram sua fortuna coletiva desde março de 2020 até o dia em que o céu caiu sobre a cabeça dos habitantes do litoral paulista. Estatística e tragédia. Mesmo pela ordem inversa, o pai dos povos tinha razão. A revista americana Forbes se referiu a esses dez mais ricos do mundo pelo nome: Elon Musk, Jeff Bezos, Bernard Arnault e família, Bill Gates, Larry Ellison, Larry Page, Serguei Brin, Mark Zuckerberg, Steve Ballmer e Warren Buffett.

Viracopos, Campinas. No lounge da executiva, a estatística também encontrava a tragédia, e alguém me dizia, quando perguntei se havia mais uma taça de espumante: aqui há sempre tudo o que a gente pedir.

Olhei a pessoa nos olhos e percebi que a desigualdade nunca será uma guerra que se possa ganhar enquanto fizermos parte dela. Sentado na minha poltrona, abri a janela e olhei a pista de decolagem. O céu abriu-se, e as nuvens negras tinham dado lugar ao espetáculo sempre igual e belo do pôr do sol.

Nesse instante, uma aeromoça da Azul perguntou-me com elegância se eu desejava ser acordado para o café da manhã caso estivesse dormindo na hora da aterrissagem. Meio a dormir respondi que não. Lembro-me vagamente de já estar sonhando. Nesse sonho eu escorregava montanha abaixo acompanhado por uns veros apócrifos da "Tabacaria", de Fernando Pessoa.

Então, como por um instinto divino, a Ana voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, e eu gritei-lhe: "Adeus, ó Stálin!", e o universo reconstruiu-se sem ideal nem esperança. E a aeronave subiu.

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