Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Passear a pé em Paris é um prazer estético e espiritual

'Balader', em francês, significa sair caminhando, o contrário de trancar-se na balada

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Conheci a expressão francesa "se balader à Paris" antes mesmo de conhecer Paris. "Balade", em francês, não é balada (que virou sinônimo de confinamento numa festa), mas sim passeio, que pode ser a pé, e mesmo sem destino. "Se balader" é perambular.

Entendi o termo assim que pisei pela primeira vez na cidade. Ela é o símbolo da categoria de cidades onde passear a pé é sempre um prazer estético e espiritual.

Não é a única no mundo. Mas é das mais inspiradoras. A paisagem cheia de beleza e história; a arquitetura de uma escala ainda humana, mesmo quando monumental; as calçadas amplas; as mesinhas para fora dos cafés.

Também em Nova York há prazer em caminhar, mas ali é preciso saber admirar a força bruta do dinheiro, que se impõe no gigantismo das construções e na agressividade do comércio. Mas também há muitos parques e praças, calçadas planas e largas; em minha primeira visita, aquela arquitetura bem nova-rica ainda assim não deixou de me impressionar pela vertiginosa verticalidade.

O Rio de Janeiro é outra cidade cuja implantação convida à contemplação. Calçadas traiçoeiras são compensadas pelos caminhos da orla, e principalmente a paisagem é de um encantamento acachapante. Se em São Paulo são raros os lugares que convidam o olhar (um estrangeiro solto num local ao acaso dificilmente verá beleza, horizonte, menos ainda o caminho da saída...), no Rio, em tantas partes, é possível se embevecer avistando a montanha, a floresta, o mar, pistas da natureza que orientam até o mais distraído dos visitantes.

Mas me criei em São Paulo, e adoro perambular. Quando se conhece a cidade fica mais fácil. Já na adolescência repetia longos trajetos a pé. (Curtos também: impaciente com filas de espera, se o ônibus não chegava logo ao ponto eu ia caminhando para o próximo, às vezes repetindo o gesto várias vezes, porque o maldito insistia em passar sempre que eu estava a meio caminho.)

Entre os maiores trajetos, havia um recorrente, entre a praça Roosevelt e o Jardim Paulistano. Tinha o hábito de ir com o amigo de colégio Carlos Marigo Filho aos festivais do finado cine Bijou, e ao final de um filme de Godard, ou de Bergman, caminhávamos os cinco quilômetros de volta conversando sem parar. O tempo passava rápido, enquanto especulávamos explicações estapafúrdias sobre o que tínhamos acabado de assistir.

Maíra Mendes

Com o próprio Marigo perambulei também algumas vezes em Paris, cidade onde ele morou e que antes eu visitava com mais frequência (e sempre andava, andava... e, se necessário, preferia o ônibus ao metrô, para não perder um cisco da paisagem).

Quando ele ficava no Marais, e eu em algum hotel central, as caminhadas depois dos jantares eram mais frequentes. Às vezes as longas conversas versavam sobre sua tese acadêmica, para cuja banca examinadora cogitou-se a presença do genial maestro Pierre Boulez (a mera possibilidade, que não se concretizou, me enchia de admiração; pouco importa que eu não lembre uma reles semicolcheia do assunto).

Para não dizer que nunca tive desgosto em Paris, lembro de um momento bizarro: nos festejos dos 200 anos da revolução francesa, 14 de julho de 1989, a cidade em festa, vi que os parisienses tinham o estranho hábito de celebrar explodindo bombinhas no chão.

Não sou de muitas fobias, mas comecei a surtar com tantas explosões ao meu lado, muitas delas aos meus pés. Desisti das comemorações e corri para a casa do meu amigo, que à época morava na periferia. Não dava para ir caminhando, mas com alívio cheguei de trem à sua casa em Asnières e vimos o resto dos festejos pela TV.

Continuo perambulando em São Paulo. É meu esporte, pelo menos mental, do qual brotam inclusive ideias de trabalho, sem falar naquelas de vida. Há insegurança, sabemos todos, mas tento reconfortar-me lembrando que meu único incidente (um furto furtivo, obra de algum habilíssimo e invisível gatuno) foi em Londres, não aqui.

É preciso ter cuidado, claro. Mas não quero simplesmente desistir das ruas, entregá-las aos miseráveis que João Doria espalhou por São Paulo com sua truculência na cracolândia, ou aos milicianos íntimos dos Bolsonaros que aterrorizam o Rio de Janeiro, por exemplo. Seria triste sair de casa somente de carro, e somente para se trancar nas baladas. Quero seguir perambulando aqui mesmo, no Brasil. 

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