Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Ostentando as raízes

Como um passageiro e sua erva-mate fazem pensar sobre o orgulho das origens

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O cenário é o aeroporto de Guarulhos, na manhã da quarta-feira (24). Estou prestes a embarcar no avião que me levará a João Pessoa, onde apresentaria, nesta quinta (25), o evento (alerta de merchandising) Talk&Taste, do canal de TV Sabor&Arte.

Entre uma notícia e outra no celular, enojado com as mentiras do criminoso que nos desgoverna, ergo a vista e algo captura minha atenção.

Componentes de um chimarrão - Karime Xavier/Folhapress

É uma pessoa que poderia passar despercebida naquele ambiente. Homem, beirando os 50, veste-se como um executivo alinhado o faria ao embarcar para uma reunião importante em outra cidade.

Terno escuro perfeitamente amoldado ao corpo esguio; camisa social de uma cor de rosa esmaecido, discreto; gravata azul petróleo chapiscada de pequenas figuras que, de longe, não identifiquei.

Mas as mãos, no lugar de dedilhar um indefectível celular… manipulam, carinhosamente, uma cuia de chimarrão.

Primeiro ele a observa atentamente, como a avaliar as condições do objeto e a decidir o momento da abordagem. Aparentemente satisfeito com o que vira, segue na ação.

Agarra uma enorme garrafa térmica –que primeiro ergue por uma longa alça– e, pressionando um êmbolo superior, despeja água fumegante no interior da cuia.

Feito isso, pousa a garrafa e empunha uma embalagem de erva-mate, que abre cuidadosamente antes de despejar parte de seu conteúdo no recipiente onde a água já repousava. A erva forma uma colina pontuda se projetando acima da borda.

Sem notar minha atenção fascinada, o homem prossegue seu ritual. Empunha o canudo que termina numa colher achatada e perfurada, de um prateado brilhante que ele primeiro eleva aos olhos para observar gentilmente.

Em seguida, a utiliza para aplainar cautelosamente o montinho de erva, até que fique da altura da borda.

Chegara a hora da recompensa após tão meticuloso preparo. A colher desaparece no fundo da cuia, e o canudo está prestes a receber a carícia que precede e acompanha os sorvos do chimarrão.

Para este ato final, o homem tira a máscara que até então lhe cobrira nariz e boca. Pela primeira vez vejo suas feições. A pele clara, que eu já havia notado, não destoava do que eu imaginaria ser um gaúcho, já que o estado é repleto de descendentes de migrantes europeus.

Mas via agora traços –talvez as maçãs do rosto salientes no rosto magro, o cabelo liso embora já grisalho– que poderiam remeter ao gaúchos originais, os índios que habitavam em paz as regiões dos pampas antes que sobre eles desabasse a fúria dos invasores, quando passaram a ser caçados por portugueses gananciosos ou doutrinados por jesuítas fanáticos.

Eu já vira inúmeras vezes gaúchos acompanhados de suas cuias de estimação, sorvendo sua infusão despreocupadamente em locais públicos, ignorando o entorno ou as circunstâncias. Mas, em geral, em situações mais prosaicas –um banco de praça, uma sala da faculdade, uma van transportando jornalistas.

O porte de executivo em vestes impecáveis, em oposição completa ao chapéu, esporas e bombachas da imagem folclórica, foi o que provavelmente me chamou a atenção. Que bobagem.

Enquanto ele se afasta em direção ao embarque, noto que sobre sua mala de rodinhas repousa seu kit completo: um estojo de lona com alça, onde garrafa, cuia e mate estão alojados.

Fico admirando o empenho daquela pessoa em viajar carregando ostensivamente suas raízes –e, neste caso, delas literalmente se alimentando. Lembro de um cozinheiro pernambucano, Rivandro França, que para onde vai carrega sobre a cabeça seu chapéu de couro de cangaceiro.

Eu gosto de me perder no mundo, me misturar. Mas não deixei de admirar neste momento aqueles que escancaram desta forma o orgulho de suas origens.

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