Juca Kfouri

Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

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Juca Kfouri

O país que já tinha o Rei pode se orgulhar de ter também a Rainha

Melhor do mundo pela sexta vez, Marta não merece súditos tão pequenos

Não há ninguém que jogue futebol e tenha nascido no Brasil com o domínio de todos os fundamentos do jogo como Marta.

Ninguém!

Desde que Rivaldo parou de jogar, Marta Vieira da Silva, 32 anos, assumiu o posto de a pessoa brasileira mais bem dotada para a prática do violento esporte bretão.

Marta recebeu o prêmio de melhor do mundo da Fifa na última segunda-feira (24), em Londres
Marta recebeu o prêmio de melhor do mundo da Fifa na última segunda-feira (24), em Londres - John Sibley/Reuters

Vieira como o Doutor Sócrates, Fenômeno como Ronaldo.

Marta não é mineira de Três Corações como o Rei Pelé, mas, alagoana de Dois Riachos, é também Rainha do futebol.

Seis vezes escolhida como a número um da temporada, superou os escolhidos cinco vezes, o argentino Lionel Messi e o português Cristiano Ronaldo. Conseguiu o improvável depois de ser eleita em 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010 ao voltar ao topo do pódio oito anos depois daquela que parecia ser a derradeira conquista. Exclusivamente por conta dela.

Aqui não se repetirá o discurso fácil de culpar quem quer que seja no Brasil pelo descaso com o futebol feminino.

Por uma razão simples: o descaso começa pelo futebol masculino.

Se o Campeonato Brasileiro, entre os homens, tem média de público inferior às segundas divisões alemã e inglesa, ou fica abaixo da vivida pela liga dos Estados Unidos, como esperar atenção ao futebol das mulheres?

Quantas vezes a rara leitora e o raro leitor leram menções à Marta e companhia neste espaço? Nas Olimpíadas e ponto final. Nem mesmo quando um clube brasileiro ganha a Copa Libertadores da América você encontra registro digno da façanha.

E olhe que em nove disputas da taça continental, desde 2009, o Santos a venceu duas vezes, o São José três, a Ferroviária de Araraquara uma e o Corinthians/Audax outra, a última, no ano passado.

O biscoito vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?

Ora, deixemos de frescura.

A CBF é madrasta com o futebol feminino como é padrasto com o masculino, melhorzinha com o último porque enriquece seus cartolas e lhes dá prestígio, embora dê, também, prisão e os force a não botar o nariz para fora do país.

Daí Marta ser um fenômeno ainda mais fenomenal.

Revelada pelo Vasco no começo deste século, com passagem vitoriosa pelo time de Sereias do Santos, onde talvez tenha recebido o espírito de Pelé, ela vive alternando a carreira entre os Estados Unidos e a Suécia, países em que a bola jogada pelas meninas não enfrenta nem o abandono nem o preconceito enfrentados por aqui.

Ou o assédio moral.

Em 2015, durante a Copa do Mundo disputada no Canadá, o diretor do departamento feminino da Casa Bandida do Futebol, Marco Aurélio Cunha, declarou ao jornal canadense Globe and Mail a seguinte pérola: "Agora, as mulheres estão ficando mais bonitas, passando maquiagem. Elas entram em campo mais elegantes. O futebol feminino costumava copiar o futebol masculino. Mesmo o modelo do uniforme era mais masculino. Costumávamos vestir as garotas como homens. Então, faltava ao time um espírito de elegância, feminilidade. Agora, os shorts estão mais curtos, os penteados estão mais bem feitos. Não é uma mulher vestida como homem".

Tamanha foi a péssima repercussão que ele tentou arrumar, e a emenda ficou pior que o soneto: "As meninas escolhem o que querem, sua apresentação e estilo. Estão caprichando, se sentindo bonitas, com novos modelos de uniformes. Errado?".

A Rainha Marta não merece súditos tão pequenos.

Sua grandeza não se mede pelo tamanho de seus shorts.

Deus salve a Rainha!

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