Juca Kfouri

Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

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Descrição de chapéu

Calor em Itaquera, pavor na Ucrânia

Como tudo é relativo, não há comparação entre sofrer na grama e fugir da guerra

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Surpreso com o ritmo do jogo entre Corinthians e Bragantino, sob o sol escaldante da manhã dominical em Itaquera, pensei nos jogadores brasileiros que tentam escapar dos horrores da guerra na Ucrânia.

Foram para lá com suas famílias em busca do conforto financeiro e hoje temem por suas vidas num conflito que não lhes diz respeito.

O autocrata Vladimir Putin não está nem aí para o sofrimento dos civis e os países da Otan tampouco, na insensata busca de cercar a Rússia com seus soldados e armas.

E tome bomba na cabeça.

Veio à minha lembrança o filme sueco "Minha vida de cachorro", que conta a história do menino Ingemar, de uns 12 anos, às voltas com drama familiar por causa de doença da mãe e que, para se confortar, compara a situação dele à da cachorrinha Laika, o primeiro ser vivo a orbitar a Terra num foguete russo, o Sputinik 2, lançado ao ar em 1957.

Laika era uma cadela vira-lata das ruas de Moscou que foi escolhida para o passeio sem volta.

Em momentos de maior desespero, afastado da mãe e do irmão, Ingemar filosofava ao ponderar que Laika estava em situação bem pior.

Guardadas as proporções é como comparar o padecimento dos 22 jogadores —que até fizeram disputa mais intensa e emocionante do que se poderia esperar em começo de temporada, um sol para cada atleta na zona leste paulistana—, com o terror vivido por quem quer atravessar as fronteiras ucranianas a pé, de trem, como for, no frio do leste europeu.

Lembrei também de entrevista que fiz com Elano sobre a experiência dele ao trocar o Santos pelo Shakhtar Donetsk, em 2005, por cerca de 20 milhões de reais.

Donetsk, como é sabido, é uma das cidades separatistas da Ucrânia, por maior ligação com a Rússia, razão pela qual é alvo de atrocidades por parte do governo de extrema-direita ucraniano. Elano nem sequer tocou em qualquer tema político.

Seu drama pessoal e familiar passou por jamais se acostumar a jogar na neve, o congelamento dos pés, os cortes nos gramados cobertos por crostas de gelo e por situações prosaicas, como a vivida por sua mulher quando, logo ao chegar, abriu a torneira da cozinha e a água era fétida, fruto de um problema no encanamento a duras penas descoberto em língua desconhecida.

Homem caminha em frente a um edifício destruído por um míssil russo em Vasylkiv, cidade ucraniana
Homem caminha em frente a um edifício destruído por um míssil russo em Vasylkiv, cidade ucraniana - Dimitar Dilkoff/AFP

Ou quando, em ruela coberta pela neve, ele com o carro do lado certo e preocupado em não se atrasar para o primeiro treino, se viu diante de um gigante ucraniano na contramão que exigia a abertura do caminho com ares poucos amigáveis.

"E o que você fez?", perguntei.

"Humilhado, dei marcha à ré e o deixei passar. Já bastava ter deixado minha mulher chorando em casa por causa da torneira", respondeu o meio-campista que defendeu a seleção brasileira na Copa do Mundo de 2010, se machucou e fez muita falta.

Depois da significativa vitória corintiana por 1 a 0, tanto seus jogadores quanto os do Bragantino foram para casa se hidratar, almoçar e descansar pelo resto do domingo.

Com um milhão de motivos para criticar a cartolagem impiedosa que lhes impinge tamanho despautério.

Nada que nem de perto se assemelhe ao que estão passando seus companheiros de profissão, mais de 10 mil quilômetros distantes do Brasil.

A pé, de trem, do jeito que der, à procura de segurança, de paz, de comida, fraldas, de seguir vivendo.

Ninguém merece tamanho sofrimento.

Só Putin, Biden etc.

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