Juca Kfouri

Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.

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Juca Kfouri

É difícil ser ético no futebol

O caso do gol do América-MG revela muito mais sobre o país do que sobre o esporte

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Nomes aqui são o que menos importa, porque é o caso típico de contar o milagre e não o santo, embora seja o pecado e não o pecador.

Qual pecado?

Diante do goleiro do Santos lesionado gravemente, com rompimento de tendão que paralisa o corpo tamanho o impacto, o jogador do América fez o gol.

Sentiu-se tão mal que nem comemorou.

Goleiro João Paulo em atendimento
Goleiro João Paulo é atendido depois de sofrer lesão em partida contra o América-MG - Santos FC no Twitter/Reprodução

O rendimento do time, superior ao do adversário até então, caiu como se todos sentissem vergonha e o empate aconteceu em seguida.

No intervalo, o capitão do time mineiro pediu desculpas pelo atitude do companheiro que, diga-se, em ato reflexo, provavelmente nem teve tempo para raciocinar.

No mesmo intervalo todos tiveram 15 minutos para pensar. Do presidente do clube ao treinador, jogadores e roupeiro. Entrar para Museu da Ética no Esporte, em maiúsculo mesmo embora inexista tal instituição, estava na mão deles — ou nos pés.

Uma ordem do presidente para que na volta do segundo tempo fizessem gol contra para descontar o tento desonroso e estaria tudo posto em seus devidos lugares.

Vocês fizeram isso, rara leitora e raro leitor? Nem eles!

Por ironia, o América fez o 2 a 1 e o autor do gol foi exatamente o capitão de discurso tão bonito minutos antes.

A discussão desencadeada pelo gol desonroso extrapolou o futebol e revelou a cara do país nas redes antissociais.

Deixemos claro que por estas se manifestam muito mais os provocadores, aqueles tão bem identificados por Umberto Eco (1932-2016): "As redes sociais deram o direito à palavra a legiões de imbecis que, antes, só falavam nos bares, após um copo de vinho e não causavam nenhum mal para a coletividade. Nós os fazíamos calar imediatamente, enquanto hoje eles têm o mesmo direito de palavra do que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis", concluiu o filósofo e escritor italiano.

É vero, mas vai além e convém saber, para tentar evitar que tomem conta do mundo, risco cada vez mais evidente.

Grande parte das reações ou apoia quem fez o gol pura e simplesmente ou é incapaz de entender a solução possível para o erro ético.

O que relembra o caso do pobre ex-zagueiro do São Paulo, Rodrigo Caio, ao inocentar o rival Jô de falta que havia resultado em cartão amarelo.

O cartão suspenderia o corintiano do jogo de volta decisivo, e o gesto permitiu ao jogador alvinegro fazer o gol que eliminou o tricolor do Paulistinha de 2017. Rodrigo Caio foi coberto de elogios pelos adversários.

Jô particularmente, viu na atitude do rival novo marco na história do futebol: "O Rodrigo Caio serviu de exemplo e com certeza vai ser diferente daqui para frente, todo jogador vai ter a consciência de fazer o que é certo", decretou.

Poucos dias depois Jô fez gol de mão contra o Vasco, não se acusou e, ao contrário, negou a falta.

Tanta gente defendeu o gol do América —muitos até culparam o goleiro santista—, que fica claro o motivo de tantos acharem normal votar em quem idolatra torturador, nega validade das vacinas ou o aquecimento global.

Fazer gols é a finalidade do futebol, dizem, e pouco importam os meios para fazê-los, assim como dane-se se para ganhar muito dinheiro alguém cobra juros extorsivos, desmata para fazer pasto, vende ou usa agrotóxico, faz propaganda de bebida alcoólica, ou exclui os pobres para deixar mais ricos os milionários.
Sempre em nome de Deus, é claro.

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