Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

O homem e suas circunstâncias

As circunstâncias representam obstáculos ao exercício da razão e da cidadania

Na semana que passou, não dispus de tempo para acompanhar o noticiário do Brasil. Enquanto isso muitos comentavam a greve dos caminhoneiros, a crise de abastecimento e o surgimento de intervencionistas —a compartilhar vídeos amadores de brigas em postos de gasolinas, correrias para supermercados e militares reivindicando ordem—, reminiscências da minha infância nos anos 80. 

Manifestantes fazem protesto em apoio a caminhoneiros e pedem intervenção militar em Brasília
Manifestantes fazem protesto em apoio a caminhoneiros e pedem intervenção militar em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

Vi-me às voltas com uma desconhecida brochura do final do século 18 —“Sobre o Homem e as suas Circunstâncias”— escrita pelo jovem Carl Wilhelm Frölich nos anos que se sucederam à sua graduação em direito pela Universidade de Halle. O fascículo é composto do diálogo entre dois personagens, Erast e Philamon, sobre temas filosóficos de interesse geral, destacando-se o papel da educação na conquista da felicidade. Erast, um pai de família preocupado com a formação e o futuro dos seus filhos; Philamon, emancipado pela razão iluminista, defendendo a relação de interdependência entre o indivíduo e a coletividade. 

Para Philamon, embora o homem não deva ser educado em função do Estado, pesa a relação entre a sua formação individual pautada na observação da sua natureza, ínsita em seu caráter, e as circunstâncias que informam os nossos ideais de bem estar e justiça social. Assim, o autor faz uso do personagem para argumentar que o desenvolvimento da razão humana estaria relacionado à nossa capacidade de refletir sobre paixões e experiências, sem permitir que estas interfiram no bom e razoável exercício da cidadania. 

Frölich propõe que para agirmos como cidadãos carecemos de aprender o que é ser gente; o que faz um cidadão de bem não é o desejo de que a ordem e os bons costumes sejam mantidos a todo e qualquer preço, como, por exemplo, por meio de uma intervenção militar. O cidadão de bem realiza-se pelo discernimento de que a verdadeira ordem social só pode ser estabelecida quando as liberdades individuais não correm riscos. Pois quem realmente se ocupa da cidadania sabe que o desenvolvimento da natureza humana repousa no pleno exercício da liberdade. 

Todos os exemplos que temos de intervenções militares na América Latina partilham características repressoras. No Brasil, a herança dessa condição se somou a uma série de outras feridas históricas, criando uma espécie de repulsa às conquistas do Iluminismo: tratando-se qualquer intervencionismo de um sintoma, entre vários outros, do descrédito na razão e na autodeterminação do homem. 

Em recente entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo, o psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg define essa situação como fértil terreno ao surgimento de movimentos totalitários. Segundo ele, o Brasil vive um período de orfandade e miséria emocional, causado pelo avanço da violência urbana e do crime organizado. Bem como pelo sucateamento da educação e da saúde pública e pelos inúmeros escândalos de corrupção endêmica que nas últimas décadas agravaram a desconfiança da população nas instituições políticas e na autoridade pública. 

Não teremos tempo hábil para trabalhar todos esses sentimentos até as próximas eleições. Reconhecer como válido o diagnóstico de Goldberg talvez seja o primeiro passo para corrigirmos critérios e acertarmos o nosso desempenho na vida pública. Neste diapasão, possível admitir correta a proposição de Frölich, de que as circunstâncias representam obstáculos ao exercício da razão e da cidadania, cumprindo ao homem buscar aperfeiçoar-se e ultrapassar os limites impostos por suas circunstâncias. 
@the_stardust

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