Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Aprendendo a viver em um novo idioma

Há dez anos fora do Brasil, precisei adaptar-me a uma rotina em que compartilho de quatro idiomas

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Há dez anos fora do Brasil, precisei adaptar-me a uma rotina em que compartilho de quatro idiomas. Durante os anos em que morei em Israel, o meu cotidiano dividiu-se entre o inglês da faculdade, o português de casa, o francês de algumas leituras acadêmicas e o hebraico que aprendi o suficiente para me comunicar com as pessoas.

Aos poucos, com os períodos que passei na Alemanha e a minha mudança de Israel para a Irlanda, alguns idiomas mais se impuseram. Assim, passei a dedicar-me ao alemão necessário aos meus estudos. O inglês tornou-se a minha língua doméstica, e o português fez-se de instrumento da minha atividade profissional.

Não há dúvidas de que o aprendizado de um novo idioma seja algo de positivo em nossas vidas, expandido o nosso conhecimento do mundo e de nós mesmos. Nada se compara ao prazer que experimentamos ao ler um texto no original e sentirmos o timbre das nossas vozes a mudar, adaptando-se à melodia das palavras, dando-nos a impressão de que, ao saltarmos de um idioma para outro, ganhamos acesso às facetas da nossa personalidade que durante muito tempo permaneceram inexploradas.

Certa vez, o escritor britânico John Le Carré, criador de personagens inesquecíveis como o agente secreto George Smiley —protagonista do romance "O Espião que Sabia Demais" — escreveu para o The Guardian sobre o fascínio que o idioma alemão exerce em sua vida desde a adolescência, ao ter contato com a poesia de Heinrich Heine e Eduard Mörike: “Foi amor ao primeiro som (...) Eu descobri que aquela língua tinha sido feita para mim. (...) Eu também gostava da ideia de que esses poemas e esse idioma eram meus e de mais ninguém.”

Identifico-me bastante com a experiência de Le Carré. Algumas das minhas primeiras memórias guardam uma melodia estrangeira, como a do francês falado por minha avó ou a dos textos em inglês que o meu pai costumava ler em voz alta antes de dormir. Assim, despertou-se em mim o desejo de possuir uma língua que também fosse exclusivamente minha —tal viria a ser o alemão de Rainer Maria Rilke que descobri durante a minha época de escola.

Mas, será que estamos preparados para adentrar o universo de um novo idioma por completo, mesmo que para isso tenhamos que nos despojar de aptidões e adiar planos preciosos, como a conquista de uma formação universitária? Esse questionamento surgiu em minha mente enquanto escutava um episódio do podcast Café da Manhã, da Folha, sobre os brasileiros que resgatam as suas nacionalidades europeias para escapar da atual crise econômica.

Ora, quem deseja emigrar deve levar em conta as diferenças entre o aprendizado de uma língua estrangeira no país de origem, onde a assimilação de outra cultura é mais lenta, deixando-nos à vontade para exercermos comparações e ajustes, e a aquisição de uma língua pela primeira vez no exterior, durante um intenso período de adaptação.

Assim que cheguei a Israel, surpreendi-me com a dificuldade de aprender hebraico. Durante o mestrado, frequentei cursos regulares e intensivos, bem como aulas particulares. Os cursos me ajudaram bastante, mas não conseguiram amenizar a sensação de estranhamento que eu sentia toda vez em que abria a boca para me expressar de forma clara e refletida no hebraico erudito dos meus professores.

Para mim, o estresse de falar hebraico era semelhante ao de alguém que tenta respirar debaixo d’água quando se está muito próximo de perder o fôlego. Ou seja, era como se eu tivesse necessidade de preservar algo, cuja expressão, no entanto, colocaria o meu próprio sentido de identidade em risco.

Talvez esse tipo de ansiedade seja uma experiência comum entre os mais diversos grupos de imigrantes, desde refugiados às pessoas que resolvem arriscar a sorte em outro país por livre e espontânea vontade.

Foi assim que, naquela época, o meu antigo livreiro de Tel Aviv presenteou-me com uma cópia de "The Impossible Exile: Stefan Zweig at the End of the World". No início deste livro, o escritor George Prochnik utiliza-se das memórias dos seus antepassados judeus austríacos para refletir sobre as dificuldades de Zweig e a esposa, Lotte, em se adaptar à vida no exílio.

Quando os avós de Prochnik chegaram aos Estados Unidos, a dinâmica do casal mudou por completo. As dificuldades econômicas e a crescente sensação de isolamento social foram alguns dos motivos que influenciaram o desgaste no relacionamento entre marido e mulher. No entanto, Prochnik sugere que os seus avós passaram a se desentender por fatores mais complexos, tal a percepção mútua de suas identidades.

Diz-nos o autor: “Normalmente pensamos sobre uma situação de exilio [ou imigração] em termos de uma relação transfigurada com o mundo exterior onde as rotinas se tornam estranhas e dificultosas. No entanto, o estranhamento [i.e. a alienação e o antagonismo] dos laços domésticos formados nos países de origem podem ser igualmente desgastantes".

Em Viena, a avó de Prochnik fora uma pianista cujo entusiasmo pela arte teria ajudado a projetar a sua família socialmente. No entanto, ao chegar na América, viu-se obrigada a ficar em casa a cuidar de dois filhos pequenos, ao passo que o marido, dez anos mais velho, gozava da oportunidade de aprender inglês para prestar os exames da validação do diploma em medicina.

Ressabido é que em qualquer situação política extrema, a perda do poder socioeconômico e os desajustes afetivos vivenciados por uma primeira geração de imigrantes sejam preferíveis à violência sofrida pelas vítimas de regimes de exceção. Assim, apesar de os avós de Prochnik jamais terem reconquistado os antigos confortos, os seus filhos recuperaram um pouco do que eles tiveram de abandonar.

Hoje acredito que, ao me presentear com a história de Prochnik, o meu livreiro estivesse me passando uma lição ao modo rabínico. Na vida, eu tive a sorte de não precisar passar por uma situação limite, em que a minha sobrevivência estivesse condicionada à adoção de uma língua que não me fosse adequada.

Finalmente, ao superar, com a ajuda do meu amigo, a ansiedade que me causava a obrigação de desenvolver o hebraico, aprendi a conviver com uma língua estranha sem o risco de me anular. Tornei-me como Jensen, personagem de Affonso Romano de Sant’anna no conto "O Segundo Verso da Canção": a carregar nos lábios, enfim, a minha própria música.

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