Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

As baixas da cultura em ano eleitoral

Espanta-me que gente dita esclarecida arvore-se de autoridade e cultive certezas

Nesta semana que passou, aborreci-me com o debate político no Facebook e resolvi deixar a plataforma por uns dias. Em mensagem aos amigos, disse que estaria me ausentando em virtude da pouca sofisticação intelectual abraçada por pessoas que, apesar da vocação para cultura, mostravam-se insensíveis ao questionamento de suas habituais simpatias e posicionamentos —os famosos hobby horses, expressão britânica que traduz com bastante humor a tendência de todos os homens em se 
deixar infantilizar pelas suas próprias paixões.

Mulher em manifestação em Nova York carrega cartaz sugerindo a indicação do escritor checo Franz Kafka, morto em 1924, à presidência
Mulher em manifestação em Nova York carrega cartaz sugerindo a indicação do escritor checo Franz Kafka, morto em 1924, à presidência - Folhapress

Embora esta locução tenha origem muito antiga, havendo sido utilizada já no século 16 para identificar certo tipo de montaria, mais tarde ela passou a denominar um famoso brinquedo infantil: o cavalinho de pau! Conquistou, logo em seguida, a sua definição atual para a mania ou o assunto predileto de alguém.

É neste sentido, por exemplo, que encontramos a expressão em “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, do escritor anglo-irlandês Laurence Sterne, um dos livros de cabeceira do nosso querido Machado de Assis e de outras grandes personalidades literárias como Goethe, Nietzsche e Freud —autores dos quais me utilizo para refletir sobre a modernidade e a condição humana.

Adverte-nos Tristram, o narrador da história, ao descrever um encontro familiar: “Eu não preciso dizer ao leitor, se ele mantiver um cavalinho de pau [paixão] em casa —que este cavalinho é o que existe de mais terno [ou frouxo] a seu respeito”.

Desde o começo do ano eleitoral, pergunto-me todos os dias se não seria tarefa de quem afirma amor ao que há de mais elevado em nossa cultura saber reconhecer as suas limitações; permitir-se julgar os próprios valores, selecionar aquilo que impulsiona o seu progresso enquanto ser humano e descartar tudo que já se tornou nocivo, paralisante ou sem objetividade.

Acredito que um dos principais problemas da nossa sociedade está relacionado à timidez de muita gente ligada à cultura — professores, escritores, artistas e leitores — em agir como pessoas realmente cultivadas. Isto é, tanto dotadas de bom senso, de bagagem intelectual e de sensibilidade artística como de autoconhecimento.

Um vício antigo, denunciado pelo escritor pernambucano Osman Lins em um dos seus ensaios de 1976, “A Perigosa Ligação Entre Cultura e Prepotência”: “Ora, espanta e faz medo que as pessoas ligadas à cultura, e das quais, por isso mesmo, esperamos, diante de assuntos culturais, uma atitude cultural, venham engrossando as águas de correntes não culturais com os seus pronunciamentos e atitudes. Como se fossem portadoras de autoridade, e não portadoras de cultura. (...) Nossa cultura ressente-se de 
várias enfermidades, e devemos lutar contra elas (...) através do debate, da discussão, de uma mudança interior, lenta, mas viva e sã. Culturalmente, afinal; e, tanto quanto possível, livremente. Nunca mediante o dirigismo, o autoritarismo e a repressão”.

Espanta-me que o desejo de tanta gente dita esclarecida —de direita ou de esquerda— seja arvorar-se de autoridade e cultivar certezas. Ora, errar, questionar-se e aprender com os próprios erros na tentativa de se conhecer melhor e finalmente conseguir ajudar o próximo é próprio dos indivíduos de cultura. A autoridade e a certeza sobre tudo aquilo que compete aos homens cabe apenas aos deuses, aos loucos e aos imbecis.

@the_stardust

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