Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Somos feitos da matéria dos sonhos

Nossos enredos oníricos tornam-se mais complexos conforme passamos a desenvolver habilidades

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Em "O Oráculo da Noite", o neurocientista Sidarta Ribeiro escreve sobre a importância do sonho para tomarmos sentido da nossa jornada evolutiva e cultural, dando a impressão de que, se não exercitarmos as nossas capacidades de sonhar e cultivar relatos oníricos, corremos o risco de abrir mão da nossa ancestral habilidade para simular futuros possíveis com base em experiências do passado.

Ribeiro afirma que entre os primeiros mamíferos, o sonho teria cumprido importante papel evolutivo, auxiliando a flexibilização comportamental dos nossos antepassados à medida que lhes conferia a habilidade de desenvolver estratégias de adaptação e sobrevivência para os períodos de vigília.

Engana-se quem acha que o sonho cumpra a mesma função do descanso de tela de um computador ou que a natureza o tivesse concebido com o simples propósito de nos livrarmos de um excesso de informações irrelevantes.

Para Ribeiro, embora o esquecimento seja um importante aspecto do sono, permitindo a formação de novas memórias, tal explicação ainda não seria capaz de dar conta do fenômeno onírico em sua totalidade, negando, portanto, a importância do sonho para o entendimento da consciência humana.

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O neurocientista Sidarta Ribeiro - Jardiel Carvalho/Folhapress

É com este propósito em mente que o neurocientista retoma alguns elementos da teoria freudiana —tal a ideia de que o sonho seria o resultado da elaboração onírica de resíduos diurnos— para apresentar a hipótese de que nossos sonhos atuariam como um importante oráculo probabilístico:

“Muito antes de Freud, acreditava-se que os sonhos diziam respeito ao futuro. Depois dele, o sonho passou a ser visto como reflexo impreciso mas significativo do passado. Decorridos quase 80 anos desde sua morte, acumulam-se evidências de que ambas as concepções são corretas. Passo a passo, através de uma jornada sinuosa, toma corpo uma teoria geral do sono e dos sonhos que compatibiliza passado e futuro para explicar a função onírica como ferramenta crucial de sobrevivência no presente.”

Em tom de provocação, Ribeiro também questiona se nossa atual incapacidade política para imaginar o futuro, ao exemplo do que testemunhamos em relação ao desmonte da educação e ao descaso para com o meio ambiente, não estaria relacionada a uma perda gradual da nossa capacidade de narrar os nossos sonhos. Seja porque não conseguimos nos lembrar do que sonhamos ou porque não damos a devida importância ao compartilhamento as narrativas oníricas.

Sobre a relevância dessas narrativas, o neurocientista propõe: “Ainda que a capacidade de sonhar tenha criado as bases para alguma consciência do eu em diversas espécies, foi a capacidade de descrever as próprias experiências advindas tanto da vigília quanto dos sonhos, para si mesmo e para os outros, que originou a narrativa de coesão de grupo, com o seus eventos originais, repertórios de histórias exemplares e comentários do cotidiano.”

Da minha infância, lembro-me de que os meus pais e a minha avó costumavam iniciar qualquer viagem de carro, ou refeição de final de semana, meio a uma animada discussão sobre os sonhos da noite anterior. Este ritual repetia-se todas as vezes em que estávamos juntos, despertando o meu interesse por aquelas histórias em que os mais velhos relatavam visitas a um passado remoto, bem como inusitados reencontros com os mortos da família.

Isto enquanto se esforçavam para interpretar as mensagens oníricas uns dos outros, como se o conteúdo dos sonhos lhes permitissem uma mais ampla compreensão do presente.

Foi nessa época, a coincidir com o meu primeiro contato com as narrativas bíblicas, que ganhei um belo fascículo de capa dura sobre a história de José do Egito, cujos relatos oníricos consolidaram a minha curiosidade pela relação entre o inconsciente e a astúcia humana, instigando-me a registrar alguns dos primeiros sonhos dos quais eu tenho lembrança. Como aquele em que eu sobrevoo a rua e o quintal de casa, a reprisar a sensação de encontrar-me suspensa no ar com o meu pai a fazer-me de avião em nossas brincadeiras.

Registro, no entanto, a minha frustração de menina ao notar que os meus sonhos ainda não tinham o mesmo nível de complexidade daqueles experimentados tanto pelos adultos da minha família, como pelo meu herói bíblico. Isto é assim porque, segundo Ribeiro, nossos enredos oníricos tornam-se mais complexos a partir do momento em que passamos a desenvolver habilidades relacionadas à linguagem, à fala, à motricidade e à sociabilização.

Posto isto, o pesquisador chega à conclusão de que “o amadurecimento dos sonhos é importante para explicar o desenvolvimento de uma identidade pessoal bem definida. Se os sonhos das crianças são pobres em emoções e imagens, estáticos e até contemplativos, o amadurecimento dos sonhos até a idade adulta desemboca em um rico processo onírico no qual o sonhador se torna o agente principal dos eventos, isto é, um operador ativo imerso em seu cenário virtual interior —que normalmente não controla, mas habita.”

Tanto a preocupação de Ribeiro com o potencial político e social do compartilhamento de narrativas —principalmente de sonhos— como a sua hipótese de que estas seriam fundamentais para o desenvolvimento de uma identidade pessoal bem definida, integrando o indivíduo em uma comunidade, remetem-me quase a um pensamento de inspiração arendtiana.

Embora Hannah Arendt aparente jamais ter escrito sobre sonhos, para Sharon Sliwinski, autora de "Dreaming in Dark Times" — cujo título faz referência à obra "Homens em Tempos Sombrios", da pensadora política alemã—, a exemplo das biografias utilizadas por Arendt em seus cursos, relatos oníricos constituiriam uma narrativa a partir da qual podemos refletir sobre a ação política e a experiência que o indivíduo faz da sua comunidade.

Deste modo, Sliwinski sustenta que sonhos não deveriam ser observados como fenômenos exclusivamente psicológicos e, portanto, relegados à esfera privada: “A vida onírica, assim como grande parte da vida acordada, está preocupada em encontrar um meio de representar nossos estados físicos e mentais. Mas questões sociais e políticas também pesam na mente, a gerar conflitos que exigem ser representados e trabalhados mesmo durante o sono.”

Ela também argumenta ser a partir do relato que os sonhos se transformam em matéria política propriamente dita. Portanto, da mesma forma que uma narrativa sobre as nossas vidas despertas, o sonho pode ser caracterizado como: “ [...] um meio extraordinariamente frágil pelo qual o indivíduo procura comunicar algo sobre os termos da sua existência —uma maneira de exercer uma certa liberdade, apesar das pressões da época.”

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