Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu guerra israel-hamas

Empatia com um lado da guerra pode levar a nova tragédia

Adesão cega a sofrimento de pessoas com que nos identificamos acirra polarização social e promove injustiças

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Em fevereiro de 2019 escrevi nesta Folha sobre como a empatia pode reforçar a polarização política e esconder impulsos cruéis, já que a sua influência em nossas decisões nem sempre é positiva, pois pode, em determinados contextos, surtir um efeito deletério em nossas demandas por justiça.

Na ocasião, comentei que a empatia corresponderia à nossa capacidade de viver de forma indireta os sentimentos de outro indivíduo. Assim, se ligo para o Recife e tomo conhecimento de que a minha mãe discutira com o gerente do supermercado, parto imediatamente para a sua defesa, sem procurar inteirar-me do outro lado da história. Mas, afinal, será que a minha mãe estaria com a razão?

Palestinos em meio aos escombros de prédio após ataque aéreo de Israel no campo de refugiados de Rafah, no sul da Faixa de Gaza - Said Khatib - 17.out.23/AFP

Uma das principais limitações da empatia é que ela nos predispõe à parcialidade. Em uma situação do dia a dia, isso talvez não tenha muita importância. No exemplo acima, o gerente do supermercado permanece empregado e a minha mãe continua frequentando o estabelecimento.

No entanto, se pararmos para pensar em contextos mais amplos, nos quais estariam em jogo o clamor por reparação, liberdade e bem-estar de multidões de desconhecidos, ao exemplo do que acontece atualmente no Oriente Médio, então tudo fica infinitamente mais complexo, pois a expressão da nossa empatia, ainda que justificada, pode acabar prejudicando a solução do conflito.

Em 7 de outubro, acordei com a notícia do ataque terrorista do Hamas em território israelense. Ainda na cama, troquei mensagens com alguns dos meus amigos em Israel para saber se estavam a salvo.

Felizmente, nenhum deles foi diretamente afetado pelo ataque, mas todos nós estávamos profundamente abalados com as perdas sofridas por outras pessoas, gente com quem, provavelmente, em algum momento das nossas vidas, devemos ter cruzado nos corredores da universidade, como o professor Yitzhak Melamed —grande estudioso da filosofia moderna e conhecedor do pensamento de Spinoza—, que comunicou em seu Facebook haver perdido amigos e familiares durante o ataque ao kibutz Kfar Aza, no qual mais de cem pessoas foram brutalmente assassinadas.

Passei os últimos dias acompanhando o noticiário e pinçando informações nas redes sociais, tentando entender o que havia acontecido, sem que isso fosse de modo algum capaz de diminuir a minha tristeza. Afinal, nada justifica o atentado de 7 de outubro.

Mas, na internet brasileira, principalmente no Twitter, onde todo o mundo aparenta ter uma opinião formada sobre tudo, muita gente parecia acreditar que sim, o ataque à população civil israelense era justificado em nome da causa palestina, enquanto outro tanto de pessoas protestavam pela destruição de Gaza.

Tudo isso em nome da empatia, como se a cega e a irrefletida adesão ao sofrimento das pessoas com as quais nos identificamos, sejam elas israelenses ou palestinas, fosse o suficiente para nos transformar em uma pessoa melhor e, por isso mesmo, moralmente legitimada a emprestar soluções para as dores do mundo, ainda que essas soluções possam resultar no recrudescimento de preconceitos extremamente nocivos e na eclosão de uma nova tragédia.

Em sua prédica do último sábado, a rabina Sharon Brous, de Los Angeles, comentou que diante de tantas perdas irreparáveis (membros da sua congregação foram diretamente afetados pelo atentado de 7 de outubro) devemos confortar as nossas comunidades e fazer o possível para não perder a cabeça.

Igualmente, em um dos episódios mais recentes de "For Heaven’s Sake" —o podcast do Instituto Shalom Hartman, em Jerusalém— o rabino Donniel Hartman e o escritor Yossi Klein Halevi, autor de "Cartas ao Meu Vizinho Palestino" (Contexto, 2022), comentaram o risco que corremos de ultrapassarmos o nosso limite moral e violarmos a nossa humanidade se, infelizmente, nos deixarmos manipular pelas emoções.

Concordo. No meu artigo de 2019 escrevi que as limitações da empatia, como o desenvolvimento de uma visão afunilada de uma situação, podem turvar os nossos posicionamentos, acirrar polarizações sociais e políticas, bem como promover novas injustiças.

Estamos diante de uma situação bastante perigosa, na qual, como alerta o maestro e pianista Daniel Barenboim, os esforços de tantos israelenses e palestinos pela paz correm o sério risco de serem sufocados por extremismos. A rabina Sharon Brous está certa, este não é o melhor momento para perdermos a cabeça.

Assim, por mais difícil que seja, devemos nos esforçar para continuar nos posicionando racional e compassivamente, pois a empatia só é capaz de gerar efeitos positivos quando aliada ao bom uso da razão.

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