Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Coronavírus

Susan Sontag acertou ao denunciar metáfora que compara doença a guerra

Tornou-se comum usar expressões militares para caracterizar medidas contra a pandemia de coronavírus

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em texto de 1983 para a revista The New York Review of Books, o historiador canadense William H. McNeill comenta a peste bubônica durante a Idade Média, julgando a estrutura das sociedades modernas menos vulneráveis ao surgimento de novas epidemias: “Uma das coisas que nos distinguem de nossos ancestrais e fazem com que a experiência contemporânea seja profundamente diferente das de outras épocas é o desaparecimento das doenças epidêmicas como fator importante na vida humana”.

Muita coisa mudou nos 37 anos desde que McNeill escreveu o seu ensaio, e não podemos culpá-lo por não prever essas transformações. Hoje, nem mesmo o sarampo pode ser considerado erradicado, e outras mazelas, como a malária e a tuberculose, persistem a ameaçar comunidades mundo afora em versões cada vez mais resistentes ao tratamento.

Além disso, no exato momento em que digito essas palavras, o coronavírus parece colocar em xeque a crença de McNeill de que, graças ao avanço científico, as epidemias teriam se tornado eventos exclusivamente midiáticos, incapazes de interferir de modo dramático no funcionamento da sociedade.

Homem com máscara em hospital de campanha com divisórias pretas
Militar em hospital de campanha no Queens, em Nova York - Eduardo Munoz - 10.abr.2020/Reuters

Em “Epidemics and Society: From the Black Death to the Present” (epidemias e sociedade: da peste negra ao presente, de 2019), o professor de história da medicina na Universidade de Yale Frank M. Snowden oferece-nos uma mais abalizada análise do tema ao criticar o otimismo predominante na segunda metade do século 20 de que teríamos superado a era das epidemias:

“Nesse clima triunfante, escolas de medicina como Yale e Harvard fecharam seus departamentos de doenças infecciosas. Acreditava-se que, principalmente no mundo desenvolvido, estaríamos prestes a nos tornar invulneráveis a novas pragas.”

O autor ressalta a necessidade do estudo do impacto político das grandes epidemias na história universal e discute, entre outras coisas, como as doenças infecciosas teriam contribuído para a independência do Haiti em 1804 e a derrota do Exército napoleônico durante a campanha da Rússia em 1812.

Snowden também analisa as possíveis consequências dos surtos de Sars, gripe aviária e ebola que testemunhamos no início deste século, chamando a atenção para o fato de que as doenças epidêmicas não deveriam ser tratadas como eventos aleatórios sobre os quais não teríamos mínima chance de controle.

Em recente entrevista para a revista The New Yorker, ele explica que “os micróbios se expandem e se difundem seletivamente para explorar nichos ecológicos criados pelos seres humanos. Esses nichos mostram muito do que somos”.

Já na introdução do seu livro, Snowden remata que as epidemias atuam como um espelho da relação do homem com a própria cultura, as instituições e o meio ambiente, refletindo o clima de desorganização intelectual que informa as nossas reações em períodos de crise. Para ele, a história das epidemias pode nos ajudar a compreender o que há de mais vulnerável em nossos respectivos corpos sociais:

“Estudá-la é entender a estrutura de uma sociedade, o seu padrão de vida e as suas prioridades políticas. Neste sentido, as doenças epidêmicas sempre foram significantes e o desafio da história médica está em decifrar os significados incorporados.”

Quem também chama a atenção para a análise dos significados atribuídos às doenças é a escritora norte-americana Susan Sontag. Nos seus ensaios “Doença Como Metáfora” (1978) e “Aids e Suas Metáforas” (1989), ela ressalta a necessidade de desvincularmos o tratamento das moléstias das comparações de natureza moral e política.

No primeiro ensaio, inspirado na sua experiência como paciente de câncer, Sontag recorre à literatura para denunciar preconceitos e fantasias comumente associados aos diagnósticos que provocam no doente sentimentos de vergonha e impotência. Nisso, ela compara as metáforas utilizadas para se discutir a tuberculose e o câncer ao longo dos séculos passados:

“Assim como a tuberculose foi vista como uma doença provocada pelo excesso de paixão, que acometia os imprudentes e os sensuais, hoje muitos creem que o câncer é uma doença causada por paixão insuficiente, que acomete pessoas sexualmente reprimidas, inibidas, sem espontaneidade, incapazes de expressar ira.”

Nesse sentido, a autora chega à seguinte conclusão: “Nada é mais punitivo do que dar um sentido à doença — invariavelmente, tal sentido é de cunho moralista. Qualquer doença de maiores dimensões, cuja causalidade seja tenebrosa e o tratamento seja ineficaz, tende a ser saturada de significação".

No segundo ensaio, Sontag comenta a epidemia de Aids na década de 1980 e denuncia com maior contundência o risco das expressões que atribuem um significado moral e político à enfermidade:

“A metáfora da peste é um veículo essencial para a visão mais pessimista de uma epidemia. [...] A peste é encarada como algo inexorável, inevitável. Os despreparados são apanhados de surpresa; os que observam as recomendações também são atingidos. Todos sucumbem quando a história é contada por um narrador onisciente.”

Ao analisar esses dois ensaios em “Sontag – Vida e Obra” (2019), Benjamin Moser destaca a dificuldade da autora em comportar-se de acordo com a sua própria opinião:

“O retrato que ela denuncia como punitivo e medieval coincide, porém, exatamente com o autorretrato presente em seus diários; o eu escondido que ela quase nunca deixava aparecer em público ou em seus escritos: a persona, ou máscara, que ela desenvolvera como meio de sobrevivência."

Ao discutir a mensagem de “Aids e Suas Metáforas”, no entanto, o biógrafo sublinha que a importância desse texto estaria justamente em expressar o mesmo fenômeno que pretende denunciar: “As suas páginas revelam a rapidez com que a metáfora pode resvalar para a mentira, a abstração e o ofuscamento”.

Embora paradoxal, o comportamento de Susan Sontag é ilustrativo da mesma dificuldade que sentimos ao discutir os possíveis efeitos da pandemia sem recorrer aos nossos sistemas de valores e crenças políticas.

No começo deste mês, a jornalista Emily Maitlis (BBC), referiu-se à linguagem em torno da Covid-19 como banal e enganosa. Em discurso cuja mensagem muito se assemelha ao argumento de Sontag, ela rechaçou a atitude das lideranças políticas e comunitárias que ora minimizam os riscos da atual pandemia —comparando-a de modo irresponsável a uma gripe comum—, ora tentam convencer de que a pandemia deverá afetar a todos de igual modo, como se ricos e pobres usufruíssem da mesma segurança em relação ao momento.

Da minha parte, assim como Susan Sontag, inquieto-me, principalmente, com as comparações entre a pandemia e as grandes guerras. Desde o início desta crise, vários governantes utilizaram-se de expressões militares para caracterizar os nossos esforços. Na Alemanha, Angela Merkel referiu-se à pandemia como o maior desafio encarado pelos seus compatriotas desde a Segunda Guerra Mundial. No Reino Unido, comparou-se a utilização de plataformas virtuais para a realização de reuniões ministeriais com a formatação de um gabinete de guerra.

Por toda parte, a referência ao vírus como “a gripe chinesa” empresta uma fisionomia ao inimigo a ser combatido. No Ocidente, populações asiáticas e outras minorias sofrem agressões e são acusadas de ser culpadas pela crise.

Ousamos dizer que profissionais de saúde estão na linha de frente da batalha contra o vírus, como se estivéssemos falando de soldados. Talvez, por isso mesmo, criamos a expectativa de que eles devam estar prontos para sacrificar as suas próprias vidas pela manutenção do nosso bem-estar. Existe até quem sugira a construção de campos de confinamento.

Na tentativa de emprestar algum sentido às nossas próprias experiências, talvez não seja possível sanar o discurso sobre a doença de toda e qualquer metáfora. No entanto, impõe-se o cuidado no uso das nossas palavras. Nesse aspecto, Susan Sontag está certa ao denunciar o absurdo da linguagem militarizante em relação a uma epidemia:

“Não estamos sendo invadidos. [...] Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós — a medicina, a sociedade — não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio. Em relação a metáfora militar, eu diria, parafraseando Lucrécio: deixem-na para os guerreiros.”

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.