Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

Como é participar de um culto pentecostal

Esta é uma descrição do que acontece durante um culto em uma igreja pentecostal em um bairro pobre

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Ir a um culto pentecostal é —entre muitas coisas— um espetáculo, um ambiente de fomento de relações e cumplicidade, uma sessão de terapia, uma vivência litúrgica, tudo isso conectado a todos os sentidos do corpo, algo que "metaversos" e inteligências artificiais dificilmente conseguirão emular.

Eu comecei a assistir cultos pentecostais como antropólogo para entender porque evangélicos dessa tradição passam tanto tempo nas igrejas, envolvidos em várias atividades, mas especialmente assistindo os cultos. A maioria é formada por trabalhadores pobres. Por que, depois de um dia intenso de trabalho, ao retornar para casa, eles saem de novo para encarar mais de duas horas nos bancos das igrejas?

Fiéis em frente a Assembleia de Deus em Salvador, em foto de 2014 - Juliano Spyer - 31.jul.14/Folhapress

Antes de me mudar e iniciar a pesquisa em 2013, eu conhecia cultos evangélicos neopentecostais a partir de eventos televisionados que acontecem em mega igrejas e têm a ver com pastores geralmente tensos e sérios pregando em microfones superamplificados para audiências indistintas. Mas essa imagem se adensou, se tornou mais viva e complexa, quando passei a frequentar regularmente cultos evangélicos nas igrejas do bairro de Salvador onde morei.

Eventualmente eu entendi por que evangélicos vão aos cultos, às vezes mais de um dia por semana, mesmo depois de jornadas de trabalho longas e intensas, em vez de usar o tempo para atividades de lazer. Mas esse entendimento resultou de uma decisão e de uma escolha.

A decisão foi ser claro desde o início com as pessoas que me receberam em suas igrejas. Elas sabiam que eu estava ali como pesquisador e não como alguém que pensa em se converter. Nem todas as igrejas toparam essa proposta, mas algumas me acolheram e isso facilitou que eu conversasse e tirasse dúvidas com fiéis.

A escolha consistiu em participar desses eventos regularmente, com empatia e curiosidade, como se fossem rituais que eu desconhecia e tomava contato pela primeira vez. Isso implicava ignorar as debilidades teológicas de pastores que muitas vezes não terminaram o ensino médio e não pensar sobre "o que está realmente acontecendo" em relação a práticas como "falar em línguas estranhas" ou o "retetê", como é conhecido o transe pentecostal.

Nesse bairro da periferia de Salvador, uma procissão de ônibus de empregadores leva e traz funcionários de baixa renda de segunda a segunda. Às quartas e aos domingos, que são os dias dos cultos principais nas igrejas evangélicas, uma parte desses trabalhadores troca uniformes anônimos por ternos e vestidos feitos sob medida, sapatos lustrosos, roupas de marca para os adolescentes, e caminham para as suas igrejas no início da noite.

A iluminação irregular e as ruas e calçadas esburacadas do bairro realçam, pelo contraste, a elegância desses transeuntes. Jovens e adultos, geralmente "pretos ou quase pretos", caminham, como se vivessem ao mesmo tempo em dois mundos, o presente e aquele que visualizam para si no futuro.

A descrição a seguir é para "não iniciados", então, ela talvez soe "técnica" e "fria" para quem é pentecostal.

O culto propriamente começa às 20h, mas às 19h as portas da igreja abrem e as várias centenas de cadeiras vão sendo gradualmente ocupadas. Em vez de sentar, as pessoas, ao chegar, escolhem um lugar, se ajoelham no chão de costas para o altar, cotovelos sobre a cadeira, para orar. Primeiro uma pessoa ora, daí são cinco. Minutos depois são 30, e os seguintes que chegam seguem a mesma prática.


Orar consiste, simplificando, em conversar em voz alta com Deus sobre dores do cotidiano: dívidas, desentendimentos, doenças etc. Essas confissões ou desabafos acontecem individualmente, mas em tom ritualizado, ritmado, profundo, e as vozes se enlaçam produzindo uma espécie de ladainha antiga que só aumenta em volume e em emotividade. Alguns choram copiosamente. Até que, às 20h, as vozes se recolhem, as pessoas se levantam do chão e sentam nas cadeiras para o início do culto.

O culto que eu acompanhei inclui dois elementos: as pregações da palavra feitas por pastores ou pregadores e os testemunhos apresentados por qualquer participante da congregação. Esses eventos são entremeados por anúncios, pausa para a coleta do dízimo, cantoria de hinos e outras atividades.

Cada pregação promete um espetáculo que resulta da capacidade do pregador de envolver e mobilizar a audiência. Ele ou ela faz isso recorrendo a sua engenhosidade retórica para produzir interpretações surpreendentes do texto bíblico, técnicas para encenar as histórias presentes nesses textos, o uso de vocalizações para criar atmosferas e interpretar personagens, além da interação constante com a plateia por meio de perguntas e estímulos diversos.

Antes do fim da liturgia, no testemunho, um fiel compartilha uma situação em que Deus fez a diferença na vida dele ou dela e, por meio disso, explicita seus vínculos com todos os presentes e, também, dos presentes entre si como uma comunidade. Depois, no desenlace final do encontro, o pastor pergunta se o coração de algum dos visitantes foi tocado por Deus naquela noite e deseja se converter. Uma ou mais pessoas se levantam atendendo ao convite. Elas vão ao altar e são abençoadas a partir de uma oração na qual a congregação participa e interage agradecendo o momento e saudando os recém-chegados.

Em resumo, é um evento ao vivo, presencial, emotivo, musical, coletivo, cuja participação é geralmente mais gratificante do que assistir enlatados da TV.

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