Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

O sono dos motoristas de aplicativo

Quem tem contas chegando e filhos para alimentar ou tem insônia na cama, ou dorme no volante de exaustão

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Um anônimo dividiu os holofotes na semana passada com a bofetada de Will Smith em Chris Rock durante a premiação do Oscar. Kaique Reis é o motorista que admitiu corajosamente ter cochilado no volante e, assim, causado a batida envolvendo o ex-BBB Rodrigo Mussi.

O acidente me dá a oportunidade de compartilhar algumas conclusões sobre a condição desses trabalhadores. Escrevo como antropólogo que estuda desigualdade no Brasil e que, por vício profissional, há muitos anos entrevista informalmente –para passar o tempo durante os traslados– motoristas de aplicativo. Aqui estão os itens mais importantes:

1. Antes da pandemia, muitos motoristas expressavam sua gratidão pela oportunidade aberta pelos aplicativos de transporte, que, para eles, representavam uma fonte de renda quando outras não estavam disponíveis, e também algo para fazer diferente de ficar em casa flertando com a depressão. Alguns motoristas, os mais pobres, pediram demissão de seus trabalhos CLT apostando nas vantagens do empreendedorismo para ampliar seus rendimentos pelo próprio esforço. Hoje o mesmo trabalho é comparado recorrentemente a uma forma de exploração a que a pessoa se submete pela ausência de outros meios de sustento.

Fila dupla de carros em desembarque no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
Fila dupla de carros em desembarque no aeroporto de Congonhas, em São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

2. Antes da pandemia e agora, os motoristas explicam que esse trabalho só é rentável quando a pessoa dedica a ele muitas horas por dia e muitos dias por semana. A vantagem financeira vem da multiplicação do baixo rendimento por corrida pelas muitas corridas –em torno de 30– feitas ao longo do dia.

3. Nos últimos anos, a crise econômica, os aumentos do preço dos combustíveis, a pandemia, que reduziu muito a circulação de pessoas nas cidades, as taxas altas pagas aos aplicativos e reajustes de preço praticados inferiores à inflação corroeram a renda desses motoristas.

4. Por causa dessas condições, uma parte dessa força de trabalho abandonou a atividade, reduzindo a disponibilidade do serviço, enquanto outras aprendem "hacks" em tutoriais na internet para selecionar as corridas que pagam melhor ou circular apenas nas áreas mais lucrativas da cidade.

5. Como outros tantos brasileiros pobres e/ou precarizados, muitos motoristas de aplicativo fizeram malabarismos com empréstimos e cartões de crédito durante a pandemia para sobreviver, assumindo o ônus de ficar com o nome sujo na praça. Pois os carros usados nesse serviço devem ser relativamente novos, os motoristas sem outras alternativas de renda, com o nome sujo e endividados, recorrem a serviços de locação.

Você mesmo pode averiguar isso perguntando a motoristas nas próximas vezes que utilizar esse serviço.

Em resumo, o motorista hoje entra no carro para trabalhar em dívida, tendo que cobrir o custo da gasolina e do carro, e só para quando ultrapassa esse valor e alcança uma meta de rendimento. Geralmente o tempo de expediente mínimo é de 12 horas dirigindo.

Não sei detalhes sobre o caso de Kaique Reis, o motorista que levava o ex-BBB Mussi. Mas, tendo como referência o panorama apresentado acima, a responsabilidade por acidentes nesses casos parecem ter menos a ver com escolhas individuais do que com as exigências de uma rotina desumana de trabalho. O motorista tem a alternativa de ficar com insônia pensando nas dívidas na cama ou dirigir até a exaustão para tentar quitá-las.

Uma solução fácil aqui seria responsabilizar as empresas de aplicativos, seguindo uma argumentação da luta de classes e da exploração do trabalho. Mas esses motoristas provavelmente estariam ainda mais vulneráveis sem essa chance para se manterem ativos em um contexto de crise acentuada pela desaceleração econômica que a pandemia produziu.

Conversei com motoristas de aplicativo sobre o caso. Eles reconhecem que, racionalmente, é responsabilidade de quem dirige saber quando precisa descansar. Ao mesmo tempo, entendem e se identificam com os prováveis dilemas do colega, que é o mesmo deles: estar desempregado e precisar trabalhar.

Eles sentem pelo provável destino de Kaique: porque ele levava um passageiro famoso, por ter admitido candidamente seu erro em frente a câmeras de TV e pela publicidade ruim que o acidente causou, ele deve retornar ao anonimato responsabilizado pela dívida pelo carro destruído e desligado do aplicativo, portanto, sem ter seu ganha pão.

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