Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

Quando surras educam?

A defesa da punição física vem de evangélicos ligados ao homeschooling ou é uma prática do Brasil popular atribuída a evangélicos?

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Na semana seguinte à que Chico Buarque declarou que a "luta dos evangélicos contra a cultura da morte é da maior importância", escreverei sobre violência doméstica. Meu ponto de partida uma denúncia. A Agência Pública reportou que uma rede de defensores do homeschooling no Brasil recomendou o uso de castigos físicos para educar crianças. Vi e ouvi muito sobre esse tema durante a minha pesquisa de campo, mas não como algo relacionado a evangélicos.

A primeira questão que me intrigou como antropólogo vivendo em um bairro periférico de Salvador foi notar como o termo "violência" era usado para falar sobre criminalidade e uso de armas de fogo e não sobre pais e mães aplicando surras em seus filhos.

Quadro negro com a palavra homeschooling
Ensino domiciliar - Gerd Altmann por Pixabay

É preciso, antes de seguir, descrever o que significa "aplicar surras" para os moradores desse bairro, para entender porque soava estranho que assaltos e assassinatos fossem entendidos como atos violentos e a atitude disciplinadora dentro das casas não fosse.

Primeiro, havia a brutalidade desse tipo de procedimento familiar que lembrava - provavelmente não por acaso - práticas para disciplinar escravos.

Fui apresentado a uma variedade de produtos vegetais usados para punir filhos. Trata-se de uma tecnologia que parte do conhecimento apurado de ramos de árvores e cipós resistentes, que não se rompem durante a aplicação dos castigos. Havia uma variedade de fontes desses produtos nos quintais ou próximos das casas, disponíveis a qualquer momento em caso de necessidade. E eles podiam ser adaptados para aumentar a experiência da dor. Por exemplo, acrescentando nós na ponta dos cipós e outras soluções que não descreverei porque isso causaria desconforto ao leitor.

Essas surras não eram, em muitos casos, atos ocasionais e, sim, ações recorrentes. Às vezes havia um motivo claro - ter roubado fruta no quintal de um vizinho -, mas, em outras ocasiões, aconteciam apenas pela deliberação soberana dos pais. Por exemplo, a falta de um filho poderia se tornar precedente para seus os irmãos e irmãs apanharem junto.

Um amigo falou sobre o rancor que ainda sentia pela mãe por causa desse tipo de tratamento, mas a percepção mais comum era a de que as surras expressavam o amor familiar. Um pastor batista, a pessoa mais próxima da "cosmovisão" de classe média que eu conheci neste bairro, foi vítima, junto com seus muitos irmãos e irmãs, desse tipo de tratamento ao longo da infância e da adolescência, e resistia à ideia de que o comportamento de seus pais tivesse sido abusivo.

Um dos motivos para ele ficar intrigado pela associação dessas surras à palavra "violência" era por esse tratamento acontecer com todas as crianças e adolescentes com quem ele conviveu nessa etapa da vida. A família dele não era diferente da de seus vizinhos com o mesmo perfil demográfico - pretos pobres analfabetos.

Uma amiga explicou que, entre seus irmãos e irmãs, o pai era a figura preferida. A mãe tinha uma postura apática e desinteressada por educar os filhos. Já o pai fazia isso frequentemente e muitas vezes chorava durante sessões de espancamento, e pedia perdão ao mesmo tempo em que batia, explicando à criança que fazia isso para o bem dela.

Algumas pessoas articulavam outra informação para justificar as surras recorrentes. Pais batiam nos filhos para protegê-los, para eles conhecerem "a diferença entre o certo e o errado". A criança deveria aprender cedo como ser "honesto e trabalhador". Pais espancavam com amor para que os filhos não se comportassem de maneira a dar brecha para serem espancados pela polícia. "A polícia não espanca com amor. Ela mata."

Ao conversar sobre esse assunto, interlocutores me falaram sobre o caso de uma mulher comum, que eu conheci vendendo comida a feira do bairro. Ao ver seu filho "dando para ruim", ou seja, demonstrando comportamento rebelde, ela o entregou à polícia - e foi admirada por esse ato - por considerar que o filho estava se tornando alguém perigoso, para o bairro e para ela mesma.

É a partir dessas referências que analiso a denúncia sobre a defesa do uso da violência por partidários do homeschooling – a educação escolar ofertada em casa.

Esse tema é defendido principalmente por evangélicos. A matéria da Agência Pública diz que "Em um curso online com foco em homeschooling, o ex-secretário nacional de Proteção Global do MMFDH, Alexandre Magno Moreira, diz aos pais: ‘O castigo físico sempre tem de ter uma finalidade (…) é algo que deve ser feito com calma, paciência e dentro de situações específicas.’"

Na minha experiência como pesquisador vivendo por 18 meses nesse bairro popular baiano, os lares evangélicos eram os que recorriam menos à violência física contra a mulher e também contra crianças.

E da posição declarada de quem não conhece pormenores sobre o caso reportado nem sobre homeschooling, interpreto essa declaração de outro modo. Dita para os meus interlocutores, essa fala poderia soar como uma reprovação do tipo de violência intensa e feroz de graceja em lares nos rincões da sociedade. Uma violência extrema e comum que nós, vendo as coisas de longe e de fora, não conhecemos.

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