Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

Reciclagem no lixão das almas

Ativismo evangélico atua principalmente em prisões e cracolândias, para resgatar quem a sociedade descartou

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Por que o pentecostalismo é adotado por tantos presos e o que eles percebem que podem ganhar escolhendo seguir esse caminho? Segundo o sociólogo Andrew Johnson, criador do documentário Se eu oferecer a minha alma, existem evidências abundantes de que igrejas evangélicas, particularmente as pentecostais, empoderam (fortalecem) brasileiros estigmatizados e que historicamente não têm voz na sociedade.

O cristianismo evangélico atinge esse objetivo, segundo Johnson, oferecendo "um sistema de crença e uma série de práticas que permitem que o detento incorpore uma identidade nova e reconhecível publicamente" de maneira a prover essas pessoas com dignidade. De uma pessoa que vive a condição de cidadão de segunda categoria, ela se torna um homem ou uma mulher "de Deus", que deixa de ser temida ou mantida a distância.

Familiares de detentos oram diante de penitenciária em Ribeirão Preto
Familiares de detentos oram diante de penitenciária em Ribeirão Preto - Beto Baptista-15.mai.2006/Folhapress

Johnson é um dos acadêmicos que estudaram a relação entre crime e conversão ao cristianismo. A questão que ele tentou responder foi: por que o pentecostalismo é muito mais praticado por detentos, em termos numéricos, do que outras religiões como o catolicismo, as religiões de matriz afro ou o espiritismo? Em outras palavras, o que torna essa vertente do cristianismo evangélico tão atrativa para pessoas nessas condições?

Nas cadeias, os presos convertidos não apenas mudam seu comportamento —abrindo mão de beber ou usar as drogas que circulam dentro dos presídios—, eles também se reúnem para fazer orações, cantar hinos e falar de suas experiências anteriores à conversão. Nessas situações, muitos choram efusivamente lembrando de episódios de suas vidas, dão consolo uns aos outros, compartilham seus momentos de dificuldades e assim fortalecem seus vínculos.

Nas entrevistas feitas por Johnson, os presos convertidos frequentemente contam que não aguentavam mais sua situação. Conforme um preso convertido explica: "A verdade é que eu já estava cansado da vida que estava vivendo. Eu não sabia a quem pedir ajuda e me sentia desesperado, em um beco sem saída. Eu estava procurando por alguma coisa que me desse apoio, algo que me ajudasse. Eu vi os irmãos da igreja e vi a sinceridade deles e vi a devoção deles a Deus".

O preso que está frustrado com sua condição pode se sentir mobilizado pela mensagem do pastor ou pelos testemunhos de outros presos e declarar seu desejo de aceitar Jesus como seu salvador. Quando isso acontece, o preso é rodeado pelos outros evangélicos. Eles fazem uma oração —cheia de carga emotiva, também um evento público na frente dos outros— que muitas vezes faz o novo convertido desmaiar.

No caso de presos que trabalharam para o crime organizado, Johnson relata que, ao se batizar, esse convertido vai aos representantes do grupo criminoso ao qual ele está vinculado, algumas vezes por muitos anos, e anuncia a decisão de romper a ligação com eles para se dedicar a Deus e aos aprendizados de sua nova vida como cristão.

O estudo de Johnson explica que o caminho evangélico também atrai pessoas do crime organizado pelo fato de a igreja representar uma organização parecida com a do crime em termos de estrutura de funcionamento e ação.

Os participantes ganham acesso a áreas exclusivas de convívio, como membros unidos pela obediência a regras que dão uma identidade conjunta para agirem com a mesma lealdade de soldados no campo de batalha. Essa ideia também será relatada na etnografia sobre o PCC, feita pelo antropólogo Gabriel Feltran.

Outra comparação apresentada por Johnson é a de como a prisão para o convertido se torna uma espécie de monastério, um espaço para o preso convertido se distanciar da vida social. Nesse ambiente protegido, longe de sua vida até aquele momento, o preso encontra uma oportunidade de recondicionar seus hábitos.

Quem, como eu, viu esse "milagre" acontecer frente a frente, tem dificuldades para dizer racionalmente como é possível.

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