Juliano Spyer

Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros

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Juliano Spyer

Em cuidado paliativo, Tia Verinha escolheu a 'boa morte'

Segurar sua mão e ajudá-la a se sentar e deitar foi o mais próximo do ato de rezar que fiz em muito tempo

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Escrevo este relato pelo celular enquanto retorno para São Paulo. Viajei a Belo Horizonte para estar perto e me despedir da Tia Verinha, a irmã mais nova do meu pai. Demorei para fazer essa viagem, talvez por nunca ter convivido com alguém em cuidado paliativo, alguém prestes a partir, mas que ainda interage.

Nossa última vez juntos foi em fevereiro, quando ainda havia uma esperança remota de que a quimioterapia pudesse vencer o câncer que ela enfrentava havia nove anos. Durante aquele encontro, havia dores, desconforto, cansaço e um pouco de mau humor. Todos nós que estávamos por perto fazíamos um esforço para evitar falar sobre doença e a morte.

Naquela ocasião, ela ainda caminhava e passamos cinco dias juntos. Eu não estava bem emocionalmente, por outros motivos, e, uma tarde, sucumbi ao pensamento de que histórias muito pessoais e antigas sairiam das conversas familiares e morreriam junto com ela.

Desta vez, marquei a passagem aérea de ida e volta para o mesmo dia. Não imaginava como estaria o ambiente da casa e sobretudo como seria encontrar com ela já acamada e sem força para se levantar. Mas o nosso primeiro momento juntos dissipou a tristeza antecipada.

Tia Verinha sentia muitos incômodos, mas aceitava todo o carinho que nós lhe oferecíamos. Ela sorriu para beijos que joguei passando pela porta do quarto, respondeu perguntas com o sinal de "joinha", fez graça só com expressões do rosto e interagiu mesmo estando com o pensamento confuso.

Talvez tenha sido essa disposição para se mostrar frágil e aceitar qualquer ajuda e carinho que me motivou a ficar lá mais uns dias. E entre o cotidiano banal e a iminência da despedida, testemunhei mais uma vez a lealdade bonita entre os irmãos e o amor silencioso que os conecta e que admite toda a idiossincrasia sem julgamento.

Me perguntei se era egoísmo estar com o coração leve encontrando a minha tia naquele estado; se eu deveria, em vez disso, estar angustiado. Mas a verdade é que segurar a mão dela, massagear seus pés e ajudá-la a se sentar e a deitar foi o mais próximo que fiz do ato de rezar em muito tempo.

Uma mão segura a mão de um paciente em hospital
National Cancer Institute no Unsplash

Tia Verinha escolheu a "boa morte".

Não quis a impessoalidade do hospital, com seus credenciamentos e horários de visita. E, estando em casa, ganhamos a presença de enfermeiros que ajudaram a família a navegar por essa despedida.

Se eu também puder escolher, de todos os cenários em que as pessoas mergulham no mistério, espero merecer fazer como a minha tia: estar em casa de mãos dadas com os meus.

Na última quarta-feira, de manhã, Verinha voou.

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