"Som da Liberdade", recomendado por muitos evangélicos bolsonaristas, provocou curto-circuito na minha mente quando o herói escapa de uma perseguição da guerrilha colombiana e vaga pela floresta ao som da voz de Mercedes Sosa, musa da esquerda latino-americana.
Por isso, analiso o filme como uma "armadilha para a mente", como propôs o antropólogo inglês Alfred Gell para análise de obras de arte. Uma das "armadilhas" do filme seria debater indiretamente a sexualidade infantil ao contar uma história sobre a exploração de menores. Alerta: se você ainda não viu o filme, pare aqui.
O roteiro é habilidoso ao colocar a audiência do filme diante da trajetória de crianças sequestradas e prostituídas, fazendo isso sem exageros: a violência sexual não aparece, mas você se torna testemunha ocular e potencialmente cúmplice desses eventos. No fim, o ator que interpreta o herói convida o público a "agir" pagando o ingresso para outras pessoas.
Aparentemente não há no longa uma agenda política. Os criminosos são retratados só como vilões e não há menção a atores políticos. Mas o roteiro omite que Tim Ballard, agente da CIA cuja história inspirou a obra, é da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, conhecida como Mórmon, organização conservadora do ponto de vista moral.
O filme é, indiretamente, sobre "o sexo dos anjos". O "som da liberdade" do título é o som de crianças brincando; o som atribuído a algo ingênuo e puro. O herói repete ao longo da história que "as crianças de Deus não estão à venda". Não soaria artificial ouvi-lo defender ideias como a de que a família é constituída apenas por pai e mãe, que a educação sexual é responsabilidade da família, não da escola, e que a sexualidade (como malícia, luxúria e tentação) surge só após os 18 anos.
É legítimo um filme ter uma perspectiva conservadora, mas "Som da Liberdade" omite ou só sugere algumas informações de contexto. No limite, isso dá margem para que eventuais críticas sejam interpretadas como desinteresse ou como conivência com o tema da exploração sexual de menores.
Estou animado para assistir ao documentário que o diretor Alejandro Monteverde planeja fazer contando a história de sua obra: um filme de baixo orçamento —um décimo do custo de produção de "Barbie"—, que foi inicialmente engavetado pela Disney e depois renasceu devido, em parte, a teorias conspiratórias que alegam que redes de pedófilos estão impedindo a sua distribuição. E tornou-se o filme independente mais lucrativo dos últimos anos, arrecadando mais de US$ 200 milhões, apesar de muitas salas estarem vazias já que muitos ingressos doados não foram usados.
Modernidade líquida ou realismo mágico?
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