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Lygia Maria

'Som da Liberdade' é exemplo de politização da arte que esvazia estética

Filme é mais um caso de como o funcionalismo pode empobrecer não apenas obras, mas nosso olhar

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Lygia Maria

Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

"Um livro não é moral ou imoral. É bem ou mal escrito. Eis tudo", disse Oscar Wilde. A frase exalta uma postura crítica ao funcionalismo, tanto na produção quanto na recepção das obras. Quando o artista cria com a intenção de cumprir um papel social ou político, ou quando o público foca na busca por mensagens desse tipo, a tendência é que se caia no didatismo e no esvaziamento da estética —que, no reino das artes, é a rainha. É importante que a função não subjugue a forma. Caso contrário, teremos um panfleto, não uma obra de arte.

O mesmo vale para o cinema. Nas últimas edições do Oscar, por exemplo, não sabemos mais se os filmes são premiados pela qualidade técnica ou somente pelas lutas sociais que representam. Muitas críticas colocam aspectos formais em segundo plano e ressaltam análises sociológicas.

Cena do filme 'Sound of Freedom', dirigido por Alejandro Monteverde
Cena do filme 'Som da Liberdade', dirigido por Alejandro Monteverde - Divulgação

O público, através das redes sociais, e a imprensa se retroalimentam com opiniões baseadas em discursos ideológicos. Assim foi com o recente "Barbie", filme sobre uma boneca, e "Coringa", sobre um vilão de história em quadrinhos. No Brasil, "Bacurau" passou pelo mesmo fenômeno, exaltado pela esquerda.

Com "Som da Liberdade" não é diferente, até pela intensa campanha de marketing que inclui distribuição de ingressos gratuitos. O filme foi relacionado à teoria conspiratória do grupo de direita radical QAnon, segundo a qual haveria uma rede internacional de pedofilia comandada por empresários e políticos poderosos. Ademais, a película é produzia por Mel Gibson e protagonizada por Jim Caviezel, figuras de Hollywood ligadas ao conservadorismo.

Contudo, quem visse o filme sem ter conhecimento dessas informações encontraria ali elementos rarefeitos da extrema-direita. Seria um filme banal sobre um policial que tenta desmantelar uma rede de tráfico de crianças na Colômbia e salvar uma garotinha sequestrada.

A narrativa é clássica, com heróis, vilões, obstáculos e um final feliz que se conecta de forma didática ao começo e ao título do filme. A trilha sonora sentimentaloide é usada abusivamente e algumas atuações são canastronas, como a de Caviezel, que sempre tem uma lágrima solitária escorrendo pela bocheca a nos lembrar que o tema é mesmo triste. Sem o marketing e o apoio de evangélicos e bolsonaristas, seria ignorado.

Há alguns sinais de direita encontrados por críticas e público. A referência a Deus (no caso, apenas três) é um deles. Mas, considerando que a maioria da população mundial é religiosa e que o apelo à divindade em momentos de dor é comum, a referência cristã numa história sobre crianças sequestradas que sofrem violência sexual não causa espanto.

Outro sinal seria representar guerrilheiros comunistas de forma negativa. Ora, se grupos como as Farc e a ELN foram responsáveis por violência e sequestros nas últimas décadas, como a da jornalista espanhola Salud Hernández-Mora e da ex-candidata à presidência da Colômbia Ingrid Betancourt, estranho seria mostrá-los de outro modo.

"Som da Liberdade" é mais um exemplo de como o funcionalismo pode empobrecer não apenas obras, mas nosso olhar estético e, com ele, potencialidades tão humanas como a fantasia e a imaginação. A polarização política nos desumaniza.

Por fim, não se pode deixar de notar a hipocrisia. Durante os créditos, Jim Caviezel explica, com números inflados e tom alarmista, que o filme tem uma missão, a de acabar com o tráfico sexual de crianças. "Os filhos de Deus não estão à venda", diz. Curioso que produções sobre o abuso de milhares de crianças há décadas em igrejas e colégios católicos de todo o mundo —como o filme "Spotlight: Segredos Revelados" (2016) e a série "The Keepers" (2017)— não provoquem a mesma comoção no mesmo público. Nesse caso, há apenas o som do silêncio.

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