Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Sonhei que o esporte se propunha a celebrar a vida e a sobrevivência

Mas ao acordar, vi clubes ganharem o direito de escalar jogadores com Covid-19

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Sonhos são, para as linhas psicodinâmicas em psicologia, matéria tão básica quanto cimento para a construção civil.

Para Freud, o processo de sonhar acontece no momento do descanso do corpo, quando então, desligada a consciência, há espaço para que os desejos reprimidos possam se realizar.

É no sono que baixamos a guarda das defesas construídas ao longo da existência, e o sonho é então o parquinho de diversão onde o inconsciente pode brincar sem medo de ser feliz. E foi por essa porta de liberdade que tudo começou.

Noite dessas, depois de um dia daqueles, dormi pensando na postura de instituições esportivas que, demonstrando total descaso com a segurança e a vida dos atletas, sem protocolos efetivos ou cuidados mínimos, fazem suas “máquinas” produzirem. E lá pelas tantas meu inconsciente deitou e rolou.

Conhecedor da utopia olímpica, começou com um desfile de abertura no qual homens, mulheres, entre eles gays e trans, desfilavam pela pista logo atrás de uma bandeira branca.

Sinal de paz, de diluição de fronteiras e de tolerância, celebravam os Jogos que entrariam para a história como a maior trégua já vista. Não uma trégua olímpica de três meses, como já faziam os gregos, mas uma trégua para a convivência pacífica, sem máscaras (físicas e psicológicas), sem álcool em gel, nem termômetro e muito menos medo.

O mundo parecia ter sobrevivido a um dilúvio muito pior do que aquele do qual se salvou Noé com algumas espécies que mereciam ser preservadas para a posteridade.

Passada a cerimônia, começaram então as competições, razão de ser do esporte. Sem hipocrisia ou falsa moralidade, criou-se um sistema de classificação no qual todas as pessoas competiam juntas. Uso o termo pessoa para não definir sexo ou gênero.

Símbolos olímpicos exibidos no Japão depois do anúncio de adiamento dos Jogos para 2021
Símbolos olímpicos exibidos no Japão depois do anúncio de adiamento dos Jogos para 2021 - Kyodo/Reuters

Afinal, esses Jogos se propunham efetivamente a celebrar a vida e a sobrevivência de uma humanidade que preferiu rever valores a ter que se sujeitar a uma morte vergonhosa por falta de solidariedade e fraternidade.

Nas pistas, campos, quadras, piscinas e tatames viu-se a busca pela excelência. Os sobreviventes da grande catástrofe buscavam mais do que nunca se provar merecedores da vida e esmeraram-se em alcançar os limites de seus corpos. Com um detalhe: absolutamente limpos!

Depois de décadas de perseguição implacável, obrigados a revelar cada minuto de seus dias para serem testados e expostos em praça pública, em caso de resultado positivo, como pecadores, os atletas dessa competição nada deviam a si mesmos, nem a qualquer instituição de controle.

Praticava-se dia a dia os valores de amizade, respeito, coragem, igualdade, determinação e inspiração.

O público lotou, respeitosamente, estádios e ginásios, e vibrava com a intensidade de uma corda de violino no ato de sua execução, fazendo o esporte ser aquilo que os utopistas sempre desejaram: uma linguagem universal; um caminho para a paz; uma possibilidade de entendimento entre os povos; mas, acima de tudo, um palco para a celebração daquilo que nos constitui como humanos.

Curiosamente, a cena que fechava a cerimônia era um ursinho abraçado a uma onça pintada, embalados pela canção “Pelo tempo que durar”. Ah... esse meu inconsciente nacionalista. Ele jamais poderia negar o que houve de melhor em 2016.

Acordei como se tivesse tomado uma garrafa das melhores. E ao me sentar para tomar café da manhã, li a notícia de que clubes ganharam o direito de escalar jogadores que testaram positivo para Covid-19 no campeonato nacional. O sono acabou, mas não o desejo de ver o meu sonho teimoso um dia se realizar.

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