Sonhos são, para as linhas psicodinâmicas em psicologia, matéria tão básica quanto cimento para a construção civil.
Para Freud, o processo de sonhar acontece no momento do descanso do corpo, quando então, desligada a consciência, há espaço para que os desejos reprimidos possam se realizar.
É no sono que baixamos a guarda das defesas construídas ao longo da existência, e o sonho é então o parquinho de diversão onde o inconsciente pode brincar sem medo de ser feliz. E foi por essa porta de liberdade que tudo começou.
Noite dessas, depois de um dia daqueles, dormi pensando na postura de instituições esportivas que, demonstrando total descaso com a segurança e a vida dos atletas, sem protocolos efetivos ou cuidados mínimos, fazem suas “máquinas” produzirem. E lá pelas tantas meu inconsciente deitou e rolou.
Conhecedor da utopia olímpica, começou com um desfile de abertura no qual homens, mulheres, entre eles gays e trans, desfilavam pela pista logo atrás de uma bandeira branca.
Sinal de paz, de diluição de fronteiras e de tolerância, celebravam os Jogos que entrariam para a história como a maior trégua já vista. Não uma trégua olímpica de três meses, como já faziam os gregos, mas uma trégua para a convivência pacífica, sem máscaras (físicas e psicológicas), sem álcool em gel, nem termômetro e muito menos medo.
O mundo parecia ter sobrevivido a um dilúvio muito pior do que aquele do qual se salvou Noé com algumas espécies que mereciam ser preservadas para a posteridade.
Passada a cerimônia, começaram então as competições, razão de ser do esporte. Sem hipocrisia ou falsa moralidade, criou-se um sistema de classificação no qual todas as pessoas competiam juntas. Uso o termo pessoa para não definir sexo ou gênero.
Afinal, esses Jogos se propunham efetivamente a celebrar a vida e a sobrevivência de uma humanidade que preferiu rever valores a ter que se sujeitar a uma morte vergonhosa por falta de solidariedade e fraternidade.
Nas pistas, campos, quadras, piscinas e tatames viu-se a busca pela excelência. Os sobreviventes da grande catástrofe buscavam mais do que nunca se provar merecedores da vida e esmeraram-se em alcançar os limites de seus corpos. Com um detalhe: absolutamente limpos!
Depois de décadas de perseguição implacável, obrigados a revelar cada minuto de seus dias para serem testados e expostos em praça pública, em caso de resultado positivo, como pecadores, os atletas dessa competição nada deviam a si mesmos, nem a qualquer instituição de controle.
Praticava-se dia a dia os valores de amizade, respeito, coragem, igualdade, determinação e inspiração.
O público lotou, respeitosamente, estádios e ginásios, e vibrava com a intensidade de uma corda de violino no ato de sua execução, fazendo o esporte ser aquilo que os utopistas sempre desejaram: uma linguagem universal; um caminho para a paz; uma possibilidade de entendimento entre os povos; mas, acima de tudo, um palco para a celebração daquilo que nos constitui como humanos.
Curiosamente, a cena que fechava a cerimônia era um ursinho abraçado a uma onça pintada, embalados pela canção “Pelo tempo que durar”. Ah... esse meu inconsciente nacionalista. Ele jamais poderia negar o que houve de melhor em 2016.
Acordei como se tivesse tomado uma garrafa das melhores. E ao me sentar para tomar café da manhã, li a notícia de que clubes ganharam o direito de escalar jogadores que testaram positivo para Covid-19 no campeonato nacional. O sono acabou, mas não o desejo de ver o meu sonho teimoso um dia se realizar.
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